Não pode pagar, não vai pagar
O ‘não’ em alto e bom som da Islândia
Pela segunda vez, o povo da Islândia votou por não pagar as dívidas  internacionais causadas pelos bancos, e banqueiros, pelas quais toda a  ilha está sendo responsabilizada. Com a presente turbulência nas  capitais europeias, poderia ser este o caminho a seguir pelas outras  economias?
por Silla Sigurgeirsdóttir e Robert H Wade, na versão em inglês do Le Monde Diplomatique*
Tradução: Pedro Germano Leal**
A pequena ilha da Islândia tem lições para dar ao mundo. Ela realizou  um referendo em abril para decidir, mais ou menos, se as pessoas comuns  deveriam pagar pela folia dos banqueiros (e por extensão, se os  governos podem controlar o setor corporativo, já que suas finanças  dependem dele). Sessenta por cento da população rejeitaram um acordo  negociado entre a Islândia, a Holanda e o Reino Unido para pagar de  volta aos governos britânico e holandês o dinheiro que gastaram para  compensar correntistas do banco Icesave, que faliu. Houve menos  resistência do que no primeiro referendo, na primavera passada [N.T. no  Brasil, outono], quando 93% votaram não.
O referendo foi significativo, uma vez que os governos europeus,  pressionados por especuladores, o FMI e a Comissão Europeia, estão  impondo políticas de austeridade, as quais não foram votadas por seus  cidadãos. Mesmo os devotos da desregulamentação estão preocupados com o  grau de servidão que o mundo ocidental tem para com instituições  financeiras que não sofrem qualquer constrangimento. Após o referendo  islandês, mesmo o Financial Times, que é liberal,  noticiou com ares de aprovação, em 13 de abril, ter sido possível  “colocar os cidadãos em primeiro lugar, ao invés dos bancos”, uma ideia  que não encontra ressonância entre os líderes políticos europeus.
A Islândia é  um exemplo excepcionalmente puro da dinâmica que  bloqueou a regulamentação e causou a fragilidade financeira no mundo  desenvolvido por 20 anos. Em 2007, pouco antes da crise financeira, a  renda média da Islândia foi a quinta mais alta do mundo, 60% acima dos  níveis dos EUA; lojas de Reykjavik foram recheadas com produtos de luxo,  seus restaurantes fizeram Londres parecer barata, e SUVs sufocaram suas  ruas estreitas. Os islandeses foram as pessoas mais felizes do mundo de  acordo com um estudo internacional realizado em 2006 (1).  Grande parte deste fenômeno residiu no crescimento super-rápido de três  bancos islandeses, que saltaram de instituições de pequeno porte em  1998 para estar entre os 300 maiores bancos do mundo, oito anos depois,  aumentando os seus ativos de 100% do PIB em 2000 para quase 800% em 2007  – uma proporção superada apenas pela Suiça.
A crise chegou em setembro de 2008, quando os mercados monetários  foram tomados após o colapso do Lehman. Em uma semana, três grandes  bancos da Islândia entraram em colapso e se tornaram propriedade  pública. A agência de classificação Moody’s agora lista-os entre os 11  maiores colapsos financeiros da história.
A caminho da modernização
Depois de mais de 600 anos de dominação estrangeira, a estrutura  social da Islândia era a mais feudal de todos os países nórdicos no  início do século 20. A pesca dominava a economia, gerando a maior parte  dos ganhos em moeda estrangeira e permitindo o desenvolvimento de um  setor comercial baseado em importação. Isso viabilizou atividades  econômicas urbanas: construção, serviços, indústria leve. Após a Segunda  Guerra Mundial, a economia cresceu fortemente, por causa da ajuda do  Plano Marshall (havia na Islândia uma grande base militar dos EUA-OTAN);  de um produto de exportação abundante, peixes de água fria, raramente  abençoado com alta elasticidade-renda da demanda; e de uma pequena  população, alfabetizada, com um forte senso de identidade nacional.
Conforme a Islândia tornou-se mais próspera, ela estabeleceu um  estado de bem-estar social, de acordo com o modelo escandinavo,  financiado por impostos, e pela década de 1980 havia atingido um nível e  uma distribuição de renda iguais à média nórdica. No entanto,  manteve-se tanto mais regulada quanto mais dominada por clientelismo do  que seus vizinhos europeus; um oligopólio local restringiu o panorama  político e econômico.
Há uma linha de descendência direta entre as estruturas de poder  quase-feudais do século XIX e o capitalismo islandês modernizado do  final do século XX, quando um bloco de 14 famílias, popularmente  conhecido como “O Polvo”, constituía a elite econômica e política  dominante. “O Polvo”  controlava as importações, transportes, bancos,  seguros, pesca e suprimentos para a base da OTAN, e fornecia a maioria  dos políticos de primeiro escalão. As famílias viviam como chefes de  clãs.
“O Polvo” controlava o Partido da Independência (IP), de direita, que  dominou a mídia e decidiu sobre nomeações de altos funcionários no  serviço civil, policial e judicial. Os bancos estatais locais foram  efetivamente comandados pelos partidos dominantes, o IP e o Partido do  Centro ou CP (2). Pessoas comuns tinham que passar por  funcionários do partido para obter empréstimos para comprar um carro, ou  para comprar moeda estrangeira para viajar para o exterior. As redes de  poder operavam como teias de bullying, servilismo e desconfiança,  impregnadas de uma cultura machista, algo como a antiga União Soviética.
Esta ordem tradicional foi desafiada a partir de dentro por uma  facção neoliberal, o grupo “Locomotiva”, que se uniu no início da década  de 1970, após estudantes de administração e direito da Universidade da  Islândia tomarem um jornal, A Locomotiva, e promoverem  idéias de livre mercado. O objetivo deles não era apenas transformar a  sociedade, mas também abrir oportunidades de carreira para si mesmos, ao  invés de esperar pelo patrocínio do “Polvo”. No final da guerra fria, a  posição do “Locomotiva” foi reforçada material e ideologicamente,  conforme os comunistas e os social-democratas perdiam o apoio popular. O  futuro primeiro-ministro do IP, David Oddsson, era um membro  proeminente.
Oddsson, nascido em 1948 em uma família de classe média, foi eleito  vereador pelo IP para o conselho municipal de Reykjavik, em 1974; por  volta de 1982, ele foi prefeito de Reykjavik, conduzindo campanhas de  privatização, incluindo a venda da indústria municipal de pesca, para o  benefício de membros do grupo “Locomotiva”. Em 1991, ele liderou o IP  para a vitória na eleição geral, e reinou (não, não é uma palavra muito  forte) como primeiro-ministro por 14 anos, supervisionando o crescimento  do setor financeiro, antes de instalar-se como diretor do Banco  Central, em 2004.
Ele tinha pouca experiência ou interesse no mundo além da Islândia.  Seu protégé no grupo “Locomotiva”, Geir Haarde, ministro da Fazenda de  1998 a 2005, assumiu como primeiro-ministro pouco depois. Estes dois  homens foram diretamente responsáveis por realizar o grande experimento  da Islândia para criar um centro financeiro internacional no Atlântico  Norte, no meio do caminho entre a Europa e os Estados Unidos.
A Islândia liberaliza
A liberalização da economia começou em 1994 quando, aderindo ao  Espaço Econômico Europeu, o bloco de livre comércio dos países da UE,  mais a Islândia, Lichtenstein e Noruega, suspenderam as restrições sobre  os fluxos transfronteiriços de capitais, mercadorias, serviços e  pessoas. O governo Oddsson, em seguida, vendeu ativos estatais e  desregulamentou as leis trabalhistas. A privatização começou em 1998,  implementada por Oddsson e Halldór Ásgrímsson, o líder do CP. Quanto aos  bancos, o Landsbanki foi entregue a grandes nomes do IP; o Kaupthing, a  seus equivalentes no CP, seu parceiro de coligação; licitantes  estrangeiros foram excluídos. Mais tarde, o Glitnir, um banco privado  formado a partir da fusão de vários outros menores, juntou-se à liga.
Assim, a Islândia rugiu nas finanças internacionais ajudada,  globalmente, pelo crédito barato e abundante, e a livre mobilidade do  capital; e, internamente, por um forte apoio político aos bancos. Os  novos bancos fundiram banco de investimento com banco comercial, de modo  que ambos compartilhavam garantias do governo. E o país tinha uma  dívida soberana baixa, o que garantiu aos bancos notas altas das  agências internacionais de classificação de risco. Os principais  acionistas do Landsbanki, do Kaupthing, do Glitnir e seus spin-offs  inverteram a dominação da política sobre as finanças, antes vigente: as  políticas do governo eram agora subordinadas aos interesses das  finanças.
Oddsson e seus amigos relaxaram as regras estatais de hipoteca,  permitindo empréstimos de 90%. Os bancos recentemente privatizados  correram para oferecer condições ainda mais generosas. O imposto de  renda e as taxas de VAT [‘imposto sobre valor agregado’, IVA] foram  reduzidos para transformar a Islândia em um centro financeiro  internacional com baixos impostos. A dinâmica da bolha tomou seu lugar.  Gestores urbanos buscaram mudar a trajetória de Reykjavik, de uma cidade  comum, para uma cidade do mundo (apesar de sua pequena população de 110  mil habitantes) e aprovaram vários novos e grandiosos edifícios  públicos e privados, dizendo: “Se Dubai pode, por que não Reykjavik?”
A nova elite bancária da Islândia tinha a intenção de expandir seu  controle sobre a economia, competindo e cooperando uns com os outros.  Usando suas ações como garantia, alguns assumiram grandes empréstimos de  seus próprios bancos, e compraram mais ações dos mesmos bancos,  inflando os preços das ações. Funcionava assim: o Banco A emprestava aos  acionistas do Banco B, que compravam mais ações do B usando ações como  garantia, elevando o valor das ações de B. O Banco B retornava o favor.  Os preços das ações dos dois bancos subiam, sem que qualquer dinheiro  novo entrasse no esquema. Os bancos não tornaram-se apenas maiores: eles  cresceram mais e mais interligados. Vários negócios deste tipo estão  agora sob investigação criminal por um promotor especial, como casos de  manipulação do mercado.
A pequena Islândia logo conseguiu entrar na liga dos grandes bancos,  com três bancos entre os 300 maiores do mundo até 2006. A  superabundância de crédito permitiu que as pessoas consumissem, em uma  celebração extravagante de sua fuga das décadas anteriores, de  racionamento de crédito (que por sua vez repousava em outra fuga, a da  dominação estrangeira, tão recentemente quanto 1944). No fim das contas,  os islandeses se viam como totalmente independentes, o que pode  explicar sua classificação no ranking da felicidade. Os proprietários e  gerentes remuneravam-se em uma escala cada vez maior. Quanto mais ricos  se tornassem, mais atraíram o apoio político.
Seus jatos particulares, rugindo para dentro e fora do aeroporto de  Reykjavik, pareciam ser uma prova visual e auditiva para a população que  os via de baixo, parte admirando-os, parte invejando-os. A desigualdade  de renda e riqueza cresceu, ajudada por políticas governamentais que  aumentaram a carga tributária da população mais pobre (3).  Os banqueiros fizeram grandes contribuições financeiras para os  partidos do governo e empréstimos gigantescos para políticos-chave. O  principal porta-voz islandês da economia de livre mercado declarou ao The Wall Street Journal: “O experimento Oddsson com as políticas liberais é a maior história de sucesso no mundo” (4).
Na euforia, os perigos de uma estratégia de “crescimento econômico  baseado em vasto endividamento externo” foram ignorados. Os islandeses  viveram o ditado de Plauto, dramaturgo romano do terceiro século a.C.,  que fez um de seus personagens declarar: “Eu sou um homem rico, enquanto  eu não pagar meus credores.”
A mini-crise de 2006 
Em 2006, havia preocupações na imprensa financeira sobre a  estabilidade dos grandes bancos, que estavam começando a ter problemas  em captar recursos nos mercados monetários (dos quais seu modelo de  negócio dependia). O déficit em conta corrente da Islândia havia  disparado, de 5% do PIB em 2003, para 20% em 2006, um dos mais altos do  mundo. O mercado de ações multiplicou-se nove vezes entre 2001 e 2007.
O Landsbanki, o Glitnir e o Kaupthing estavam operando muito além da  capacidade do Banco Central da Islândia de apoiá-los como garantidor de  último recurso; suas responsabilidades eram reais, mas muitos de seus  ativos foram duvidosos. Em fevereiro de 2006, a agência de classificação  Fitch rebaixou as perspectivas da Islândia de estável para negativa e  desencadeou a “mini-crise” de 2006: a krona [N.T. ‘coroa islandesa’,  moeda corrente da Islândia] caiu drasticamente, o valor dos passivos dos  bancos em moeda estrangeira subiu, o mercado de ações caiu, a  insolvência aumentou, e a sustentabilidade de dívidas em moeda  estrangeira tornou-se um problema público. O banco Danske de Copenhagen  descreveu a Islândia como uma “economia geyser”, a ponto de explodir (5).
Os banqueiros e os políticos islandeses desprezaram a crise. O Banco  Central da Islândia pegou um empréstimo para dobrar as reservas  cambiais, enquanto a Câmara de Comércio, administrada por representantes  do Landsbanki, do Kaupthing, do Glitnir e seus spin-offs, respondeu com  uma campanha de relações públicas. Ela pagou ao economista monetário  americano Frederic Mishkin U$135.000 para emprestar seu nome a um  relatório atestando a estabilidade dos bancos da Islândia.
Supostamente pagou ao economista Richard Portes £58.000 (U$95.000),  da London Business School, para fazer o mesmo por um relatório mais  tarde. Em 2007, o economista pelo lado da oferta, Arthur Laffer,  assegurou à comunidade empresarial islandesa que o crescimento econômico  rápido, com um grande déficit comercial e o crescimento da dívida  externa eram sinais de sucesso: “A Islândia deve ser um modelo para o  mundo” (6). O valor dos “ativos” dos bancos era, então, cerca de oito vezes maior que o PIB da Islândia.
Nas eleições de maio de 2007, a Aliança Social Democrática (SDA)  entrou em um governo de coalizão com o IP, ainda dominante. Para o  constrangimento de muitos dos apoiadores da SDA, líderes do partido  abandonaram suas promessas pré-eleitorais e endossaram a contínua  expansão do setor financeiro.
Apesar de terem sobrevivido a 2006, o Landsbanki, o Glitnir e o  Kaupthing tinham dificuldades em levantar dinheiro para financiar suas  compras de ativos e pagar as dívidas existentes, em grande parte  denominadas em moedas estrangeiras. Então, o Landsbanki criou algo novo  com o Icesave, um serviço online que visava ganhar depósitos de poupança  em varejo, oferecendo taxas de juros mais atraentes do que os bancos  tradicionais.
Fundado na Inglaterra em outubro de 2006, e na Holanda 18 meses  depois, o Icesave chamou a atenção de sites de finanças, especializados  em ofertas pela internet, e logo foi inundado com depósitos. Milhões de  libras vieram da Universidade de Cambridge, da Autoridade Geral da  Polícia Metropolitana de Londres, e mesmo da Comissão de Auditoria do  Reino Unido, responsável pela supervisão de fundos do governo local, bem  como dos 300 mil depositantes do Icesave só no Reino Unido.
As entidades do Icesave foram legalmente estabelecidas como filiais,  ao invés de subsidiárias, então elas estavam sob a supervisão de  autoridades islandesas, ao invés daquelas dos países onde se instalavam.  Ninguém percebeu que a agência reguladora islandesa tinha uma equipe  total, incluindo recepcionista, de apenas 45 pessoas, e que sofreu uma  alta rotatividade já que muitos passaram a trabalhar para os bancos, que  ofereciam melhor remuneração.
Ninguém se importava com isso, já que de acordo com as obrigações da  Islândia como membro do Fundo de Garantia de Depósito do Espaço  Econômico Europeu, a sua população de 320.000 seria responsável pela  indenização dos depositantes no exterior em caso de falha. Acionistas do  Landsbanki colheram os lucros de curto prazo enquanto a maioria dos  islandeses não sabia absolutamente nada sobre o Icesave.
Cartas de amor
A segunda “solução” para as dificuldades em levantar novos fundos foi  uma maneira de obter mais acesso à liquidez sem oferecer ativos reais  como garantia. Os Três Grandes venderam títulos da dívida a um banco  regional menor, o que levou estes títulos ao Banco Central, e tomavam  empréstimos contra eles, sem ter que fornecer garantias adicionais; eles  então emprestavam de volta para o banco em questão. Os títulos foram  chamados de “cartas de amor” — meras promessas. Ao participar deste jogo  e aceitando como garantia reclamações sobre outros bancos islandeses, o  Banco Central foi conivente na estratégia dos bancos de jogar para  conseguir a ressurreição.
Então os bancos internacionalizaram o processo: os Três Grandes  abriram subsidiárias com sede em Luxemburgo e venderam cartas de amor  para elas [as subsidiárias]. As subsidiárias vendiam por sua vez ao  Banco Central de Luxemburgo ou ao Banco Central Europeu e recebiam  dinheiro vivo em troca, que poderiam passar de volta para o banco-sede  na Islândia ou usar elas mesmas. A Organização de Cooperação e de  Desenvolvimento Econômico (OCDE) calcula que apenas as cartas de amor  domésticas, entre o Banco Central da Islândia e os bancos islandeses,  causou prejuízos ao BCI e ao Tesouro de 13% do PIB (OECD Economic  Surveys: Islândia, junho de 2011).
Colapso financeiro
Os bancos islandeses desabaram duas semanas depois do Lehman  Brothers. Em 29 de setembro de 2008, o Glitnir aproximou-se de Oddsson  no Banco Central para ajudar no combate ao problema de liquidez que  estava a caminho. Para restaurar a confiança, Oddsson instruiu o Banco  Central a comprar 75% das ações do Glitnir. O resultado disso não  impulsionou o Glitnir, mas, ao contrário, minou a confiança na Islândia.
A classificação de risco do país afundou, e linhas de crédito foram  retiradas do Landsbanki e do Kaupthing. Deu-se início a uma corrida às  agências do Icesave no exterior. Oddsson adiantou-se, em 7 de outubro de  2008, e buscou indexar a krona [coroa islandesa] a uma cesta de moedas  com um valor próximo ao período pré-crise. Com a moeda caindo e na  ausência de controles de capital, as reservas cambiais foram exauridas: a  indexação durou só algumas horas, tempo suficiente apenas para que  aqueles a par da situação trocassem suas kronas por outras moedas com  uma taxa muito mais favorável.
Fontes internas indicam que bilhões deixaram a moeda nessas horas. Em  seguida, a krona flutuou, e afundou. Em 8 de outubro, o então  primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, congelou os ativos do  Landsbanki no Reino Unido com o apoio legal das leis anti-terrorismo. O  mercado de ações, títulos bancários, valores imobiliários e o rendimento  médio entraram em queda-livre.
O FMI chegou a Reykjavik em outubro de 2008 para preparar um programa  de gestão de crise. Esta foi a primeira vez que o FMI havia sido  chamado para resgatar uma economia desenvolvida desde a Grã-Bretanha, em  1976. Ele ofereceu um empréstimo condicional de 2,1 bilhões de dólares  para estabilizar a krona e apoiou as demandas dos governos britânico e  holandês de que a Islândia deveria honrar suas obrigações junto ao Fundo  de Garantia de Depósito Europeu e recompensá-los por suas operações de  resgate aos depositantes do Icesave.
A população normalmente calma da Islândia entrou em erupção em um  irado movimento de protesto, dirigido principalmente contra Haarde,  Oddsson e IP, embora a ministra das relações exteriores Ingibjörg  Gísladóttir, da SDA, também tenha sido foi considerada culpada. Milhares  de pessoas reunidas na principal praça de Reykjavik – nas tardes  congelantes de sábado entre outubro de 2008 e janeiro de 2009 – bateram  panelas e abraçaram o edifício do parlamento para exigir a renúncia do  governo, e alvejaram o prédio com comida.
Em janeiro de 2009, a coalizão IP-SDA se rompeu. Até agora, a  Islândia é o único país a ter mudado claramente para a esquerda após a  crise financeira. Um governo interino SDA-LGM (Social  Democratas-Movimento Verde de Esquerda) foi formado em janeiro de 2009  para conduzir o país até as eleições em abril. Nas eleições, as cadeiras  do IP foram reduzidas a 16. Apesar do favorecimento esmagador do  sistema eleitoral em seu favor, este foi o pior resultado do IP desde a  sua formação em 1929.
A rejeição da dívida do Icesave 
O governo SDA-LGM veio à luz sofrendo uma pressão imediata para que  pagasse a dívida do resgate do Icesave; grande parte do empréstimo do  FMI foi retida até que Reykjavik concordasse em pagar. O novo governo  também se dividiu sobre a possibilidade de se candidatar a membro pleno  da União Europeia e da Zona do Euro, com maioria SDA fortemente a favor.  Em outubro de 2009, após longas negociações, o governo apresentou ao  parlamento a proposta a que tinha chegado em relação à dívida do  Icesave: 5,5 bilhões de libras esterlinas (7,8 bilhões de dólares), ou  50% do PIB da Islândia, seriam pagas aos cofres britânicos e holandeses  entre 2016 e 2023.
Em protesto, o ministro da Saúde renunciou e cinco dissidentes se  recusaram a votar com o governo. O projeto de lei foi aprovado  forçadamente no dia 30 de dezembro de 2009, contra a vontade da  população. Em 5 de Janeiro de 2010, o  Presidente Grímsson anunciou que  não iria assinar a lei, por respeito à vontade da população. No  referendo que se seguiu, o projeto de lei foi decisivamente rejeitado.
Nas eleições municipais Reykjavik, em maio de 2010, a SDA caiu para  19% e um comediante foi eleito prefeito da cidade. Em outubro, os  protestos recomeçaram, e a coalizão concordou em realizar eleições para  uma assembleia constituinte com o objetivo de elaborar uma nova  constituição (a então existente fora herdada da Dinamarca na época da  independência da Islândia, em 1944). Quando a eleição foi invalidada  pela Suprema Corte, a assembleia foi reconvocada como um conselho  constitucional nomeado pelo parlamento.
O acordo na mesa neste segundo referendo sobre o Icesave, em abril,  envolveu concessões substanciais por parte dos governos britânico e  holandês. Após a votação pelo ‘não’, o desacordo pode ter que ir aos  tribunais internacionais.
A crise adiada
O custo das perdas em empréstimos e garantias, adicionado ao custo da  reestruturação das organizações financeiras, traz o total de custos  diretos da crise fiscal para cerca de 20% do PIB – maior do que em  qualquer outro país com exceção da Irlanda (OECD Economic Surveys,  Islândia, junho de 2011). Mas o adiamento de grandes cortes nos gastos  públicos até este ano deu à economia um tempo para respirar, e a forte  desvalorização ajudou a gerar um superávit comercial pela primeira vez  em muitos anos.
Até agora, a Islândia sofreu quedas no PIB e nas taxas de emprego  menores que países com grandes cortes em gastos públicos, tais como a  Irlanda, Estônia e Lituânia. A taxa de desemprego, de apenas 2% em 2006,  tem oscilado entre 7% e 9% desde 2009, mas a taxa de emigração, de  islandeses e outros trabalhadores europeus (predominantemente  poloneses), foi a maior desde 1889. No entanto, o governo SDA-LGM  anunciou cortes drásticos nos gastos públicos para 2011 e além. Governos  locais não têm orçamento para novos projetos. Hospitais e escolas estão  cortando salários e demitindo funcionários. O congelamento das ações de  despejo expirou em 2010.
Finanças no volante
A decisão do governo IP-SDA de fornecer garantias ilimitadas de  depósitos bancários ilustra a sua dívida para com a elite financeira. Se  tivesse limitado a garantia a 50 milhões de kronas (70 mil dólares),  ele teria protegido os depósitos de 95% dos depositantes. Apenas os 5%  mais ricos, incluindo muitos políticos, beneficiaram-se da garantia  ilimitada, o que significa agora mais restrições nos gastos públicos.
A reduzida escala da Islândia parecia tornar mais fácil desafiar a  negação do governo de que havia uma crise iminente, mas o oposto também  era verdade. O governo Oddsson realizou uma privatização extrema da  informação. O Instituto de Economia Nacional da Islândia tinha a  reputação de uma instituição com pensamento independente, e Oddsson  acabou com isso em 2002. A partir de então, os bancos, agências  internacionais de classificação de risco e a Câmara de Comércio foram  praticamente a única fonte de informação e comentários sobre o estado da  economia, presente e futuro.
Paradoxalmente, uma série de relatórios críticos foram publicados  quando a bolha estava em seus estágios iniciais, incluindo um do BCI.  Mas, por volta de 2007-08, quando havia perigos muito sérios, os  relatórios, incluindo os do FMI, tornaram-se visivelmente mais suaves no  tom. Parece que as instituições financeiras oficiais, bem como  banqueiros e políticos, entenderam que a situação era tão frágil que  bastaria falar dela para desencadear uma corrida aos bancos.
Em outubro de 2010, o parlamento decidiu indiciar o primeiro-ministro  Haarde por violação de responsabilidade ministerial. O secretário  permanente de finanças Baldur Gudlaugsson (ex-membro do grupo  “Locomotiva”) foi sentenciado a dois anos de prisão por usar informações  privilegiadas para a sua vantagem pessoal ao vender suas ações do  Landsbanki, em setembro de 2008. Mas o promotor especial encarregado da  investigação dos bancos já trabalha há 2 anos com uma equipe de 60  advogados e outros profissionais e até agora não formalizou nenhuma  acusação.
Enquanto isso, Oddsson foi nomeado em setembro de 2009 editor-chefe  do Morgunblaðið, principal jornal impresso na Islândia, e orquestrou a  cobertura da crise. Um comentarista disse que isso seria o mesmo que  nomear Nixon editor do Washington Post após Caso Watergate. A elite da Islândia sabe tomar conta dos seus.
Notas:
(1) World Database of Happiness (‘Banco de dados mundial da felicidade’), 2006: http://worlddatabaseofhappiness.eur.nl
(2) Na oposição estão o Partido Social-Democrata e, mais à esquerda, o Partido do Povo.
(3) Stefán Ólafsson e Arnaldur Sölvi Kristjánsson,  “Income Inequality in a Bubble Economy: the Case of Iceland 1992-2008”,  trabalho apresentado na Luxemburg Incomes Study Conference, 28 a 30 de  junho 2010; www.lisproject.org/conferenc…
(4) Hannes Gissurarson, “Miracle on Iceland”, The Wall Street Journal, New York, 29 de janeiro de 2004.
(5) Danske Bank, “Iceland: Geyser Crisis”, Copenhagen, 2006.
(6) Arthur Laffer, “Overheating is not dangerous”, Morgunblaðið, Reykjavik, 17 de novembro 2007.
Robert Wade é professor titular de economia política da London School  of Economics; Silla Sigurgeirsdottir professora de políticas públicas  da Universidade da Islândia. Esta é uma versão atualizada do artigo  “Lessons from Iceland”, publicado pela primeira vez no New Left Review,  London, setembro/outubro de 2010.
* O Viomundo recomenda fortemente que nossos leitores assinem o Le Monde Diplomatique, aqui (em inglês) e aqui (em português).
**Pedro Germano Leal é o novo tradutor do Viomundo.  É também escritor e pesquisador. Atualmente, é doutorando em teoria  literária e cultura visual na Universidade de Glasgow (Escócia), sendo  representante de pós-graduação do Centre for Emblem Studies. É professor  de língua portuguesa, tradutor e intérprete do University of Glasgow  Language Centre. Foi professor de língua latina e argumentação da  Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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