domingo, 10 de junho de 2012

Manifesto Uninômade +10: TATU OR NOT TATU 10/06/2012


9/6/2012 – Universidade Nômade
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido na Vila Vudu:
“O mano espiou desconfiado pra ele porém Macunaíma disfarçou bem:
– Olhe, tem paca tatu cotia... Minto, cotia não enxerguei nenhuma. Paca tatu, cotia não. Jiguê emprenhava pelas oiças mesmo, foi logo pegando na espingarda e falou:
– Então vou porém mano jura primeiro que não brinca com minha obrigação.”
[Mario de Andrade, Macunaíma [1928], XIII: “A piolhenta do Jiguê
Distribuímos o manifesto que aí vai, não porque concordemos com o que aí está escrito. De fato, concordamos apenas com uma ou duas coisas ou meias-coisas das que aí vão manifestas. E absolutamente não nos identificamos com o que aí se manifesta. Mas, macunaímicos, a gente aqui aprende muito, só de brincar coa obrigação dozôtro.
No geral, a gente aqui não gosta de manifestos. Manifestos são declarações identitárias de identidades.
Ninguém precisa de adesão identitária a identidades. “Manifesto Nômade” é, de fato, contradição em termos: se ‘manifesta-se’ em manifesto é porque se identificou, quer ser da turma ou quer arregimentar gente; mas, se se identificou, parou; se parou, não é nômade, é identitário, fixo, paradão. 
“Tatu ou não tatu”, tampouco dá muito certo. Ah, o abiiiiiismo das palavras! Melhor seria “tá tu e tu num tá”. 
NADA, nesse mundão, é mais difícil do que parodiar Oswald de Andrade. Porque Oswald é brilhante e raso como pires com água: se se sacode muito, joga-se fora a água e babaus o brilho. Oswald falava do ser à moda udenista-comunista erudito-fuleira – mais ou menos o que Machado de Assis também fez, com menos comunismo e com mais solidariedade com os pretos e pobres, e com mais gênio. Oswald não falava de cavar mais, ou menos, nem para dentro nem para fora, que não era hômi de cavá, era flanêur. E nômade, claro. 
Nesse manifesto há um empenho de seduzir adeptos, que nos faz fugir dele. Se nos querem alinhados, não podemos segui-los [risos, risos e saudades do Arnaldo!]
Divulgamos esse manifesto com o mesmo ânimo e pelas mesmas razões com o qual e pelas quais divulgamos o discurso do presidente Assad, ou do presidente Gaddafi ou do guru-máster da Al-Qaeda, ou do Ahmadinejad e tudo que os Anonymous escrevam: porque os nômades “Tatu or not tatu” – como a Al-Qaeda, o Assad, o Gaddafi ou os Anonymous e uns poucos, outros, raríssimos, – NÃO SÃO TÃO PERFEITAMENTE TOLOS nem são TÃO PERFEITAMENTE REACIONÁRIOS como há quem suponha e diga e repita MUUUUUUUITO, que eles seriam. E há saberes revolucionários que só esses aí (e mais alguns, raríssimos) têm, mesmo, à vera, e que a gente aqui, na Vila Vudu, ainda precisa aprender. 
Mas, sim, sim, tá na cara: quem “deseja tudo” é a burguesia. Os pobres queremos comida, casa, paz. Os pobres nunca queremos “tudo”. Sabe-se lá, sim, se não estamos é muuuuito errados, nisso. Sabe-se lá. Mas “tudo”, os pobres sabemos não desejar.
É o tal negócio: a natureza é linda, o rio é lindo, a barragem é feia. Mas a barragem FICA. E os eco-éticos que continuem a linda luta deles. OK. Mas a barragem FICA.
Então, aí vai. É ler e, como faz o Macunaíma, despachado o marido Jiguê, mergulhar nas delícias piolhentas da mulher dele
A palavra revolução voltou a circular. Nas ruas, nas praças, na internet, e até mesmo nas páginas de jornal, que a olha com olhos temerosos. Mas, principalmente, em nossos espíritos e corpos. Da mesma maneira, a palavra capitalismo saiu de sua invisibilidade: já não nos domina como dominava. Assistimos ao final de um ciclo – o ciclo neoliberal implementado a partir dos anos 80, mas cujo ápice se deu com a queda do muro de Berlim e o consenso global em torno da expansão planetária do mercado.
Muitos dentre nós (principalmente os jovens) experimentam seu primeiro deslocamento massivo das placas tectônicas da história.
Mas nossa era não é apenas crepuscular.
Ao fim de um ciclo abrem-se amplas oportunidades, e cabe a nós transformar a crise da representação e do capitalismo cognitivo em novas formas de democracia absoluta. Para além das esferas formais, dos Estados e nacionalidades. Para além do capitalismo financeiro e flexível. Lá onde brilha nossa singularidade comum: a mulher, o negro, o índio, o amarelo, o pobre, o explorado, o precário, o haitiano, o boliviano, o imigrante, o favelado, o trabalhador intelectual e manual. Não se trata de um recitar de excluídos, mas de uma nova inclusão híbrida. A terra, enfim, nossa. Nós que somos produzidos por esta chuva, esta precipitação de encontros de singularidades em que nos fazemos divinos nesta terra.
É pelo que clama a multidão na Grécia, na Espanha e os occupy espalhados pelos Estados Unidos; é pelo que clamam as radicalidades presentes na primavera árabe, esta multidão situada para além da racionalidade ... contiocidental. É o mesmo arco que une a primavera árabe, as lutas dos estudantes no Chile e as lutas pela radicalização da democracia no Brasil. Nossas diferenças é o que nos torna fortes.
A luta pela mestiçagem racial, simbólica, cultural e financeira passa pela materialidade do cotidiano, pela afirmação de uma longa marcha que junte nossa potência de êxodo e nossa potência constituinte. Acontecimento é o nome que nos anima para o êxodo perpétuo das formas de exploração. Êxodo para dentro da terra. Fidelidade à terra. Tatu or not tatu.
É preciso ouvir em nós aquele desejo que vai para além da vida e da sua conservação: para além do grande terror de uma vida de merda que nos impõe o estado de precariedade e desfiliação extrema. É preciso re-insuflar o grito que nos foi roubado à noite, resistir aos clichês que somos e que querem fazer de nós: para além de nossas linhas de subjetivação suspensas entre o luxo excedente do 1% ou do lixo supérfluo dos 99%.
É preciso não precisar de mais nada, a não ser de nossa coragem, nosso intelecto e nossos corpos, que hoje se espraiam nas redes de conhecimentos comuns apontando para nossa autonomia. Somos maiores do que pensamos e desejamos tudo.
Não estamos sozinhos!
É preciso resistir na alegria, algo que o poder dominador da melancolia é incapaz de roubar. Quando o sujeito deixa de ser mero consumidor-passivo para produzir ecologias. Um corpo de vozes fala através de nós, porque a crise não é apenas do capital, mas sim do viver. Uma profunda crise antropológica. Manifesta-se no esvaziamento de corpos constrangidos, envergonhados, refletidos na tela da TV, sem se expandir para ganhar as ruas. Nossos corpos paralisam, sentem medo, paranóia: o outro vira o grande inimigo. Não criam novos modos de vida. Permanecem em um estado de vidaMenosvida: trabalho, casa, trem, ônibus, trabalho, casa.
A vida individual é uma abstração. Uma vida sem compartilhamento afetivo, onde a geração do comum se torna impossível. É preciso criar desvios para uma vidaMaisvida: sobrevida, supervida, overvida. Pausa para sentir parte do acontecimento, que é a vida. Somos singularidades cooperativas. Pertencemos a uma esfera que nos atravessa e nos constrói a todo o momento.
O capitalismo cognitivo e financeiro instaura um perpétuo estado de exceção que busca continuamente reintegrar e modular a normalidade e a diferença: lei e desordem coincidem dentro de uma mesma conservação das desigualdades que produz e reproduz as identidades do poder: o “Precário” sem direitos, o Imigrante “ilegal”, o “Velho” abandonado, o “Operário” obediente, a “Mulher” subjugada, a “Esposa” dócil, o “Negro” criminalizado e, enfim, o “Depressivo” a ser medicalizado. As vidas dos pobres e dos excluídos passam a ser mobilizadas enquanto tais. Ao mesmo tempo em que precisam gerar valor econômico, mantêm-se politicamente impotentes.
O pobre e o louco. O pobre – figura agora híbrida e modulada de inclusão e exclusão da cadeia do capital - persiste no cru da vida, até usando seu próprio corpo como moeda. E o louco, essa figura que vive fora da história, “escolhe” a exclusão. Esse sujeito que se recusa a produzir, vive sem lugar. Onde a questão de exclusão e inclusão é diluída no delírio. Ninguém delira sozinho, delira-se o mundo. Esses dois personagens vivem e sobrevivem à margem, mas a margem transbordou e virou centro.
O capital passa a procurar valor na subjetividade e nas formas de vida das margens e a potência dos sem-dar-lucro passa a compor o sintoma do capital: a crise da lei do valor, o capitalismo cognitivo como crise do capitalismo.
A crise dos contratos subprimes em 2007, alastrando-se para a crise da dívida soberana europeia, já não deixa dúvidas: a forma atual de governabilidade é a crise perpétua, repassada como sacrifício para os elos fragilizados do arco social.
Austeridade, cortes, desmonte do welfare, xenofobia, racismo. Por detrás dos ternos cinza dos tecnocratas pós-ideológicos ressurgem as velhas bandeiras do biopoder: o dinheiro volta a ter rosto, cor, e não lhe faltam ideias sobre como governar: “que o Mercado seja louvado”, “In God we trust”.
O discurso neutro da racionalidade econômica é obrigado a mostrar-se em praça pública, convocando o mundo a dobrar-se ao novo consenso, sem mais respeitar sequer a formalidade da democracia parlamentar. Eis o homo œconomicus: sacrifício, nação, trabalho, capital! É contra este estado de sítio que as redes e a ruas se insurgem. Nas mobilizações autoconvocadas em redes, nas praças das acampadas, a exceção aparece como criatividade do comum, o comum das singularidades que cooperam entre si.
No Brasil são muitos os que ainda se sentem protegidos diante da crise global. O consenso (neo) desenvolvimentista produzido em torno do crescimento econômico e da construção de uma nova classe média consumidora cria barreiras artificiais que distorcem nossa visão da topologia da crise: a crise do capitalismo mundial é, imediatamente, crise do capitalismo brasileiro.
Não nos interessa que o Brasil ensine ao mundo, junto à China, uma nova velha forma de capitalismo autoritário baseado no acordo entre Estados e grandes corporações!
O governo Lula, a partir das cotas, do Prouni, da política cultural (cultura viva, pontos de cultura) e da distribuição de renda (programas sociais, bolsa família, valorização do salário mínimo) pôde apontar, em sua polivalência característica, para algo que muitos no mundo, hoje, reivindicam: uma nova esquerda, para além dos partidos e Estados (sem excluí-los).
Uma esquerda que se inflame dos movimentos constituintes que nascem do solo das lutas, e reverta o Estado e o mercado em nomes do comum.
Uma esquerda que só pode acontecer “nessa de todos nós latino-amarga América”.
Mais do que simples medidas governamentais, nestas políticas intersticiais, algo de um acontecimento histórico teve um mínimo de vazão: aqueles que viveram e morreram por transformações, os espectros das revoluções passadas e futuras, convergiram na construção incipiente de nossa emancipação educacional, racial, cultural e econômica.
Uma nova memória e um novo futuro constituíram-se num presente que resistira ao assassinato simbólico da história perpetrado pelo neoliberalismo.
A popularidade dos governos Lula tinha como lastro esses interstícios onde a política se tornava uma poética.
Já hoje, nas taxas de aprovação do governo Dilma, podemos facilmente reconhecer também as cores deslavadas de um consenso prosaico. O “país rico” agora pacifica-se no mantra desenvolvimentista, retrocedendo em muitas das políticas que tinham vazado. Voltam as velhas injunções progressistas: crescimento econômico para redistribuir! Estado forte!
As nuvens ideológicas trazem as águas carregadas do gerencialismo e do funcionalismo tecnocrático: menos política, mais eficiência! Desta maneira, removem-se e expropriam-se os pobres: seja em nome de um Brasil Maior e se seu interesse “público” (Belo Monte, Jirau, Vila Autódromo), seja em nome de um Mercado cada vez Maior e de seu interesse “privado” (Pinheirinho, TKCSA, Porto do Açu).
Juntando-se entusiasticamente às equações do mercado, os tratores do progresso varrem a sujeira na construção de um novo “País Rico (e) sem pobreza”. Os pobres e as florestas, as formas de vida que resistem e persistem, se tornam sujeira.
A catástrofe ambiental (das florestas e das metrópoles) e cultural (dos índios e dos pobres) é assim pacificada sob o nome do progresso. Dominação do homem e da natureza conjugam-se num pacto fáustico presidido por nenhum Mefistófeles, por nenhuma crise de consciência: já somos o país do futuro!
Na política de crescer exponencialmente, só se pensa em eletricidade e esqueceu-se a democracia (os Soviets: Conselhos). Assim, governa-se segundo a férrea lógica – única e autoritária – da racionalidade capitalista. Ataca-se enfim a renda vergonhosa dos “banquiplenos”, mas a baixa dos juros vai para engordar os produtores de carros, essas máquinas sagradas de produção de individualismo, em nome da moral do trabalho.
Dessa maneira, progredir significa, na realidade, regredir: regressão política como acontece na gestão autoritária das revoltas dos operários das barragens; regressão econômica e biológica, como acontece com uma expansão das fronteiras agrícolas que serra a duração das relações entre cultura e natureza; regressão da vida urbana, com a remoção de milhares de pobres para abrir o caminho dos megaeventos; regressão da política da cultura viva, em favorecimento das velhas oligarquias e das novas indústrias culturais.
O progresso que nos interessa não contém nenhuma hierarquia de valor, ele é concreta transformação qualitativa, “culturmorfologia”.
Este é o imaginário moderno em que a dicotomia prevalece: corpo e alma, natureza e cultura, nós e os outros; cada macaco no seu galho! Estes conceitos resultam em uma visão do mundo que distancia o homem da ecologia e de si mesmo. O que está em questão é a maneira de viver no planeta daqui em diante. É preciso encontrar caminhos para reconciliar estes mundos. Perceber outras configurações relacionais mais móveis, ativar sensibilidades. Fazer dessa revolução um grande caldeirão de desejos que crie formas de cooperação e modos de intercâmbio, recombine e componha novas práticas e perspectivas: mundos. Uma mestiçagem generalizada: nossa cultura é nossa economia e nosso ambiente é nossa cultura: três ecologias!
As lutas da primavera Árabe, do 15M Espanhol, do Occupy Wall Street e do #ocupabrasil gritam por transformação, aonde a base comum que somos nos lança para além do estado de exceção econômico: uma dívida infinita que busca manipular nossos corações e manter-nos acorrentados aos medos. Uma dívida infinita que instaura a perpétua transferência de renda dos 99% dos devedores ao 1% dos credores. Não deixemos que tomem por nós a decisão sobre o que queremos!
A rede Universidade Nômade se formou há mais de dez anos, entre as mobilizações de Seattle e Gênova, os Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre e a insurreição Argentina de 2001 contra o neoliberalismo. Foram dois momentos constituintes: o manifesto inicial que chamava pela nomadização das relações de poder/saber, com base nas lutas dos pré-vestibulares comunitários para negros e pobres (em prol da política de cotas raciais e da democratização do acesso ao ensino superior); e o manifesto de 2005 pela radicalização democrática.
Hoje, a Universidade Nômade acontece novamente: seu Kairòs (o aqui e agora) é aquele do capitalismo global como crise.
Na época da mobilização de toda a vida dentro da acumulação capitalista, o capitalismo se apresenta como crise e a crise como expropriação do comum, destruição do comum da terra.
Governa-se a vida: a catástrofe financeira e ambiental é o fato de um controle que precisa separar a vida de si mesma e opõe a barragem aos índios e ribeirinhos de Belo Monte, as obras aos operários, os megaeventos aos favelados e aos pobres em geral, a dívida aos direitos, a cultura à natureza. Não há nenhum determinismo, nenhuma crise terminal.
O capital não tem limites, a não ser aqueles que as lutas sabem e podem construir.
A rede Universidade Nômade é um espaço de pesquisa e militância, para pensar as brechas e os interstícios onde se articulam as lutas que determinam esses limites do capital e se abrem ao possível: pelo reconhecimento das dimensões produtivas da vida através da renda universal, pela radicalização democrática através da produção de novas instituições do comum, para além da dialética entre público e privado, pelo ressurgimento da natureza como produção da diferença, como luta e biopolítica de fabricação de corpos pós-econômicos.
Corpos atravessados pela antropofagia dos modernistas, pelas cosmologias ameríndias, pelos êxodos quilombolas, pelas lutas dos sem teto, sem terra, precários, índios, negros, mulheres e hackers: por aqueles que esboçam outras formas de viver, mais potentes, mais vivas.

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