3/6/2013, Pepe Escobar,
Asia Times Online – The Roving
Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Leia também:
- 1/6/2013, redecastorphoto, Muftah (editorial) em:
Protestos
na Turquia: “Um ciclo crescente de
descontentamento”
-
4/6/2013, redecastorphoto, TRNN em:
Turquia:
240 mil trabalhadores unem-se aos protestos, em mais de 67
cidades
Pepe Escobar |
Primavera
Turca? Não. Ou, pelo menos, ainda não. O Primeiro-Ministro turco Recep Tayyip
Erdogan será o novo Mubarak? Não. Ou, pelo menos, ainda não.
A
história não se cansa de ensinar que basta uma faísca para incendiar uma
fogueira política. A faísca mais recente em Istambul foi um pequeno grupo de
jovens ambientalistas, que organizaram uma acampada pacífica, estilo Occupy, na Praça Taksim, para protestar
contra a destruição planejada de um dos poucos espaços verdes remanescentes na
cidade, o Parque Gezi.
A
destruição do Parque Gezi segue um padrão globalmente testado de neoliberalismo:
o parque será substituído por um simulacro – no caso turco, uma réplica das
tendas da artilharia otomana – que abrigará – e o que seria?! – mais um
shopping center. É crucial observar que o prefeito de Istambul, também do
Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP, de Erdogan), é proprietário de
uma cadeia de lojas de venda a varejo que reinará, com certeza, no novo
shopping center. E o homem que controla o contrato de mais esse
“redesenvolvimento” é ninguém menos que o genro de Erdogan.
Como
se poderia adivinhar que aconteceria e aconteceu, a repressão policial violenta
contra os manifestantes levou os principais quadros do principal partido de
oposição a Erdogan, o Partido Republicano do Povo (CHP), a unirem-se aos
manifestantes. E, sem demora, o tema “verde” da Praça Taksim foi transformado
num “Abaixo o ditador!” à imagem da Praça Tahrir.
Praça Taksim, sábado 1/6/2013 |
No
sábado, a Praça Taksim já estava tomada por dezenas de milhares de pessoas; uma
multidão atravessou a pé a Ponte do Bósforo, da parte asiática de Istambul,
batendo panelas e frigideiras à imagem do “panelaço” de 2002 na Argentina – numa
aberta e declarada violação da lei que proíbe o trânsito de pedestres sobre a
ponte. A Polícia, correspondentemente, aprofundou a repressão, com canhões de
água, spray de pimenta e gás
lacrimogêneo.
A
atitude de uma super acovardada televisão turca foi, previsivelmente, horrível –
o que surpreende talvez menos, se se sabe que 76 jornalistas estão presos na
Turquia acusados de apoiar “o terror” e de outros “crimes” não especificados.
Pode ser interpretada também como reflexo do mando absoluto de EUA e OTAN sobre
um aliado precioso. Coisa do tipo “OK, quebrem alguns ossos, mas nada de
mortos”.
Manifestantes se defendem, com frágeis barricadas, dos ataques da polícia munida de gás de pimenta, gás lacrimogêneo e canhões de água |
A
mídia impressa fez um pouco melhor. O jornal Hurriyet – que costumava
usar suas faculdades críticas – recobrou um pouco da própria dignidade e
publicou manchetes como “Erdogan
já não é intocável”.
Zaman – da rede do movimento islamista moderado Gulen – divulgou, em
editoriais, sua extrema preocupação com o poder ilimitado de Erdogan e de seu
partido AKP; condenou o comportamento “excessivo” de ambos e apoiou os protestos
de rua.
Enquanto
isso, nos EUA e na União Europeia, Ancara não foi, de fato, condenada: só as
“preocupações” ocas, superficiais, de sempre. A Turquia, afinal, é o mais
recente cenário-país e cartão postal da CNN. Está totalmente presente “nas
telinhas”, com mensagem alinhada ao ideário da rede, de ditadura simpática ao
neoliberalismo (como as petromonarquias do Conselho de Cooperação do Golfo).
Condenar violentamente e ameaçar com ataques e drones são reações
reservadas, com exclusividade, ao Irã e à Síria.
Faz
perfeito sentido que tudo tenha começado com o “redesenvolvimento” do Parque
Gezi. Mas não passa de pequeno detalhe, num esquema gigante – a quantidade
imensa de megaprojetos do Partido AKP por toda a Istambul, que excluem
totalmente a opinião da sociedade civil.
A
Turquia pode até ter-se tornado a 17ª economia do mundo, mas está crescendo
apenas 3% em 2013 (que já é muito melhor que o que se vê na Europa). O partido
AKP com certeza percebeu que o milagre econômico à turca tem pés de barro,
baseado em produtos de baixo valor agregado, muito dependente de mercados –
agricultura, pequena indústria ou turismo.
Multidão de manifestantes atravessa a ponte sobre o Bósforo no domingo, 2/6/2013 |
É
onde entra uma terceira ponte sobre o Bósforo – parte de uma nova rodovia de
260km e US$2,6 bilhões, unindo a Trácia à Anatolia, contornando a metrópole de
Istambul; e um dos entroncamentos chaves do Corredor de Transporte
Europa-Cáucaso-Ásia [orig. Transport Corridor
Europe-Caucasus-Asia, TRACECA], apoiado pela União Europeia.
Nas
eleições de 2011, Erdogan abriu sua campanha com o anúncio de um “projeto
louco”: um canal de 50 km, do Mar de Marmara ao Mar Negro, a
ser concluído em 2023 – centenário da República Turca – ao custo de mais de $20
bilhões. O objetivo não é só descongestionar o Bósforo, mas com a construção de
uma terceira ponte e de um terceiro porto, transferir o eixo de Istambul para o
norte da cidade, ainda não desenvolvido. O projeto inclui duas novas cidades e
um terceiro aeroporto.
O
partido AKP apresentou essa política ambiciosa como “transformação urbana”. O
pretexto é o risco de um grande terremoto – como o de 1999. Para o que se resume
a uma vastíssima bonanza da mais pura
especulação imobiliária, Erdogan e o AKP dependem de duas agências do governo,
TOKI e KIPTAS – que têm fixados preços altos demais para os turcos médios. O
alvo prioritário são as camadas mais altas da classe média – que votam AKP.
O
partido AKP é absolutamente obcecado com controlar Istambul – que elege 85 dos
550 membros do Parlamento (Ancara, a capital, elege apenas 31). Erdogan e seus
correligionários estão no governo da Grande Istambul desde 1994 (nessa época,
como membros do Partido Refah). Erdogan começou a conquistar a Turquia a partir
da capital otomana.
Os
megaprojetos apadrinhados pelo partido AKP foram concebidos como a mais moderna
plataforma a partir da qual projetar a Turquia emergente no rumo da
pós-globalização, extraindo o máximo do clichê de “uma ponte entre
civilizações”.
Afinal
de contas, 50% das exportações turcas originam-se em Istambul.
Multidão. Praça Taksim na madrugada de sábado, 1/6 para domingo 2/6 de 2013 |
O
marketing urbano-político desses megaprojetos condicionará a
credibilidade global da Turquia entre os suspeitos de sempre, os “investidores
internacionais”. Nada tem a ver com coesão social ou respeito à natureza ou ao
meio ambiente. Pode-se dizer, sem exagero, que os homens e mulheres que se
reúnem nos movimentos da Praça Taksim compreenderam total e perfeitamente as
implicações dessa lógica autoritária de desenvolvimento, sedenta de lucros.
E
então?! Quem se candidata a “Amigos da Turquia”?
Recep Erdogan |
Erdogan
pode até ter admitido, contra vontade, que seus policiais exageraram. Mas o
máximo que pode fazer é acusar os manifestantes, dizer que estão ligados “ao
terror”, que têm “laços obscuros”. O único objetivo dos “saqueadores” seria
roubar votos do AKP nas eleições parlamentares de 2015. Jactou-se de que podia
pôr nas ruas um milhão de apoiadores seus, para cada 100 mil opositores. Bom...
5 mil opositores já começaram a apedrejar o prédio de seu escritório em
Besiktas.
Os
protestos já se alastraram para Izmir, Eskisehir, Mugla, Yalova, Antalya, Bolu,
Adana e, até, para tradicionais bastiões do AKP, como Ancara, Kayseri e Konya. A
multidão nas ruas conta-se às dezenas de milhares. Se se somam os carros que
buzinam e as pessoas que batem panelas das janelas e sacadas dos prédios, em
apoio aos manifestantes – como se ouve todas as noites em Ancara e Istambul (até nas
pacatas áreas residenciais no lado asiático) – já se pode falar em centenas de
milhares.
Não
há dúvidas de que o movimento “Praça Taksim/Occupy Gezi/Abaixo o ditador” já se
vai expandindo, cobrindo toda uma parte da Turquia secular que se opõe
totalmente ao partido AKP e ao mix
encarnado em Erdogan: conservadorismo religioso somado a um neoliberalismo
linha duríssima, em governo altamente personalizado/ centralizado/ autocrático.
Os
turcos seculares veem também claramente que Erdogan tenta extrair o máximo de
proveito possível de um nebuloso “processo de paz” com o PKK, partido dos
curdos, para obter votos suficientes para um referendo constitucional. Esse
referendo apagará da Constituição o sistema parlamentar, para ali instalar um
sistema presidencial – muito oportuno, dado que o mandato de Erdogan como
Primeiro-Ministro expira em 2015; e ele aspira a continuar ao leme, como
presidente.
Erdogan
pode ter ainda maioria sólida em toda a Anatolia conservadora.
Mas pode, também, estar brincando com fogo. É o homem que, há dois anos, gritava
que “Mubarak tem de ouvir seu povo”. E o mesmo deveria fazer também Assad na
Síria. Hoje, a maioria dos turcos rejeita completamente o “apoio logístico” que
Ancara insiste em oferecer às gangues “rebeldes” na Síria.
A
cereja do bolo da ironia, hoje, é Damasco, que já ordenou que Erdogan contenha a
violência de sua polícia contra o povo; que ouça “o povo turco”; ou que
renuncie.
E
agora?! Erdogan implanta uma zona aérea de exclusão sobre Istambul? (Ou a OTAN
implanta uma zona aérea de exclusão sobre Erdogan?) Os “rebeldes” turcos
receberão apoio direto de Damasco, de Teerã e do Hezbollah? Damasco convoca uma
reunião da “comunidade internacional” e cria os “Amigos da
Turquia”?
Nota dos
tradutores
[1] Take it to the bridge (Lit.: Leve lá p’ra ponte). É
expressão que parece assumir diferentes significados, conforme o contexto
em que apareça.
Pode significar “[leve para a ponte] para descartar”, “[leve
para a ponte] para jogar no rio”. Todas as sugestões de tradução são bem-vindas.
A frase aparece, por exemplo, em “Sex machine”, James Brown, 1971 que assiste-se
a seguir:
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