A morte do jornalista Ruy Mesquita, diretor do jornal O Estado de São, na noite de terça-feira (21), ensejou matérias em telejornais e portais de internet que estão divulgando uma das mais antigas conversas moles dos autores intelectuais de uma ditadura sangrenta, selvagem e degenerada que se abateu sobre o Brasil durante mais de duas décadas.
Um aviso: este artigo nada tem que ver com o cidadão Ruy Mesquita, de quem o Blog lamenta a morte como lamentaria de qualquer ser humano, mas com uma tentativa malandra de revisionismo histórico que o passamento do dito cujo desencadeou.
O Jornal Nacional, por exemplo, apresentou assim o papel do Estadão durante a ditadura militar que, ao menos, o telejornal reconheceu que foi apoiada em seus primeiros momentos pelo jornal que Ruy Mesquita dirigiu até morrer:
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Jornal Nacional
Edição de 21 de maio de 2013
Reportagem sobre a morte de Ruy Mesquita
“Ao lado do pai, Júlio de Mesquita Filho, e já como jornalista, [Ruy Mesquita] apoiou o golpe de 1964, mas a família rompeu com o regime no ano seguinte [1965], quando as eleições foram canceladas [pela ditadura]”
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História para boi dormir, isso sim.
Nos momentos que antecederam o golpe, Ruy Mesquita, filho do dono de O Estado de S. Paulo, era vinculado à UDN. Na redação de seu jornal, semanalmente eram feitas reuniões conspiratórias com civis e militares tão interessados quanto aquele barão da mídia em tramar o golpe.
Contudo, a ruptura que teria ocorrido em 1965 – um ano após o golpe – entre o Estadão e o regime que o jornal ajudara a implantar, não era para valer. Não passava de uma forma de o veículo disfarçar seu apoio a medidas da ditadura que se coadunavam com a sua visão político-ideológica.
O Estadão, por exemplo, apoiou a censura aos movimentos de esquerda e até a peças de teatro que entendia como “propaganda comunista”. Editorial desse jornal publicado em junho de 1968, portanto bem depois de sua suposta “ruptura” com o regime, deixa ver que sua alardeada luta contra a censura não passava de fachada.
Abaixo, trecho daquele editorial:
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O ESTADO DE SÃO PAULO
Editorial
(…) Foi uma oportuna manifestação a que se registrou recentemente na Assembléia Legislativa, pela palavra do deputado Aurélio Campos, sobre os excessos que se tem verificado em representações teatrais no terreno do desrespeito aos mais comezinhos preceitos morais.
O mundo teatral – tanto os atores e atrizes como os autores – vêm movendo uma campanha sistemática contra a censura, e como esta nem sempre é exercida por autoridades à altura de tão graves e, às vezes, tão delicadas questões, a tendência de muitos é cerrar fileiras entre os que combatem.
O que na censura geralmente se vê é uma ameaça à liberdade, o que assume a feição particularmente antipática quando à liberdade ameaçada é a artística. Carradas de razão, entretanto, teve o parlamentar acima referido ao assinalar, a propósito de peça teatral a cuja representação assistira, que a censura, longe de se mostrar rigorosa no escoimá-la de seus exageros mais escandalosos, o que revelou foi uma complacência que não pode deixar de ser severamente criticada (…).
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O editorial considerou “branda” a censura dos ditadores a peça teatral que o jornal considerava esquerdista demais. Ora, alguém é capaz de explicar que ruptura é essa que pedia que aqueles com os quais teria rompido intensificassem a censura a peças teatrais?
Esse pedido do jornal ao regime para que intensificasse a censura provocou intensa comoção entre a classe artística, a ponto de o crítico teatral Sabato Magaldi dar entrevista comunicando o repúdio dos artistas àquele editorial do Estadão.
Artistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, então, no mesmo dia da publicação do editorial mandam chamar a imprensa a fim de anunciar que os prêmios “Saci” (premiação que o Estadão conferia anualmente aos melhores da produção brasileira de cinema e teatro) seriam devolvidos ao jornal em protesto contra o tal editorial, considerado pelos artistas “totalmente favorável à censura ditatorial”.
Os prêmios “Saci” foram devolvidos ao Estadão pelos seguintes artistas: Cacilda Becker, Walmor Chagas, Fernanda Montenegro, Maria Della Costa, Sérgio Mamberti, Odete Lara, Jorge Andrade, Lélia Abramo, Etty Fraser, Ademar Guerra, Fauzi Arap, Augusto Boal, Flávio Império, Flávio Rangel, Gianfrancesco Guarnieri, José Celso Martinez Corrêa, Liana Duval, Paulo Autran e Tônia Carrero.
E nem vamos falar da demissão da psicanalista Maria Rita Kehl pelo Estadão em 2010 por “delito de opinião”, ou seja, por ter escrito artigo que o jornal, que apoiava abertamente a candidatura José Serra, considerou que era favorável à candidatura Dilma Rousseff. Afinal, o foco é esse jornal e a ditadura.
Nesse aspecto, há até uma densa obra acadêmica entre as várias que denunciam a promiscuidade entre jornalões como o Estadão e a ditadura militar para muito além de 1965.Trata-se do livro da historiadora Beatriz Kushnir, feito a partir de sua tese de doutorado, intitulado “Cães de Guarda – Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição de 1988” (Editora Boitempo).
Sobre a autora, vale relatar que é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretora do Arquivo Geral do Rio de Janeiro, que possui um dos maiores acervos sobre o regime militar. Sua tese foi apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O livro relata que jornalistas de formação passaram a integrar o Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP) e trata dos policiais que atuaram como jornalistas sob anuência inclusive dos donos do Estadão.
Segundo a autora, os donos de jornais como Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, o Estado de São Paulo e outros “acatavam” os bilhetinhos da repressão sobre o que se podia e o que não se podia publicar.
Os jornalistas colaboracionistas que gente como os Mesquita instalaram nas redações ganharam até apelido, ficando conhecidos como “gansos”.
O ponto alto do livro é o que trata do jornal Folha da Tarde (FT), do Grupo Folha, de Octavio Frias. Foi o jornal que prestou os maiores serviços à repressão. Era chamado pelos jornalistas independentes de “delegacia” ou “orgão oficial da OBAN”.
Contudo, o livro de Kushnir aborda, também, a postura de muitos outros veículos naquele período. Relata que todos os grandes órgãos de imprensa transmitiam a versão do Estado na luta contra a guerrilha, ocultando a tortura, os assassinatos, os desaparecimentos e as mortes dos oposicionistas.
Além do grupo Folha, foco do livro, patrocinaram e sustentaram o golpe também os Diários Associados, de Assis Chauteaubriand; o Estado de São Paulo e o Jornal da Tarde, da família Mesquita; a Rádio Eldorado; a TV Record; a TV Paulista; o Jornal do Brasil; o Correio do Povo; a Tribuna de Imprensa, de Carlos Lacerda; o Noticias Populares, de Hebert Levy; e as Organizações Globo, de Roberto Marinho.
“Cães de Guarda” relata, por exemplo, a posição do escritor Frei Betto sobre o comportamento do Estadão naquele período. Ele criticou as notícias de culinária no lugar das matérias censuradas no Jornal da Tarde e no Estado de São Paulo.
Para Frei Betto, as receitas culinárias “Atenuavam a cumplicidade do Estadão com a mentira oficial publicando, nos espaços censurados, receita de bolos ou poemas de Camões”, mas, segundo o escritor, “Os acólitos do regime adaptavam-se, substituíam o noticiário cortado, antecipavam-se à tesoura do censor”.
A morte de Mesquita, como já foi dito, é lamentável como a de qualquer ser humano. Mas que não venham agora veículos como a Globo, que lamberam as botas da ditadura e a ajudaram a matar e a torturar inocentes, tentar apagar os crimes que esses barões da mídia cometeram naqueles anos de chumbo. Não vamos esquecer.
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