Luiz Manfredini *
Em 10 de maio de 1969, nove dias antes de completar 79 anos, o líder vietnamita Ho Chi Minh redigiu em Hanói, com sua letra miúda, levemente inclinada para a direita (e tão intensa e nítida que suspeito tenha sido escrita com nanquim), um texto breve (não mais de duas páginas) que ficou conhecido como seu testamento. Começava assim:
“A nossa resistência patriótica contra a agressão americana – mesmo se for preciso suportar as maiores dificuldades e conseguir novos sacrifícios – conduzirá necessariamente à vitória final. É um fato absolutamente certo. Proponho-me, chegado aquele dia, percorrer todo o país, de Sul e Norte, para felicitar os nossos compatriotas, os nossos quadros e os nossos combatentes heroicos e visitar os nossos velhos, os nossos jovens e as nossas criancinhas bem-amadas. Irei, em seguida, em nome do nosso povo, aos países irmãos do bloco socialista e aos países amigos do mundo inteiro para lhes agradecer por terem ajudado de todo o coração a luta patriótica do nosso povo contra a agressão americana”.
Ho Chi Minh não chegou a cumprir o que se havia proposto. Morreu quatro meses depois, em três de setembro, vencido pela idade e por complicações decorrentes de uma tuberculose obstinada que o acompanhava desde os 24 anos. E a guerra só terminaria seis anos depois, quando em 30 de abril de 1975 as tropas da Frente Nacional de Libertação irromperam em Saigon, libertando a parte do país sob domínio norte-americano, então conhecida como Vietnã do Sul.
O velho Tio Ho, como o chamavam as crianças e os jovens do Vietnã, marcou o século 20 e ganhou a admiração e o respeito do mundo com sua figura proeminente de revolucionário que se pôs à frente de seu povo para derrotar dois poderosos agressores, primeiro os franceses, em 1954; depois os norte-americanos, em 1975. Uma proeminência, uma grandeza superlativa que contrastava com o homem magro (para não dizer magérrimo), uma espécie de asceta da revolução, que ocupava apenas dois quartos modestamente mobiliados do palácio presidencial de Hanói, vestindo a mesma sandália e a túnica gasta, dormindo em cama sem colchão.
Sou de uma geração em que os jovens revolucionários que mal deixavam a adolescência moldavam-se pela figura no velho Ho como dirigente político, intelectual e também como poeta. Porque éramos jovens que julgávamos não haver ação política justa se dissociada de uma perspectiva nítida e inegociável de transformação do mundo e tal perspectiva andava par e passo com a poesia, ela própria era poesia e a poesia era o sonho do novo mundo. Sei que soa estranho, na atmosfera moral deste início de século, dedilhar as cordas dessa lembrança e dessas utopias. Paciência.
O que mais me impressiona, o que sempre me impressionou em Ho Chi Minh foi sua obstinação de ocupar-se inteiramente, incondicionalmente com o mundo e os homens, desviado das desimportâncias mundanas, das pequenezas de espírito, fundido com profunda radicalidade aos dilemas essenciais da existência. Deixou a cabana de palha de onde nasceu, há exatos 123 anos, em 19 de maio de 1890, para estudar e tornar-se professor de escola média. Mas logo ganhava o mundo como aprendiz de cozinheiro num navio francês. Em Paris, foi jardineiro, lavador de pratos, cozinheiro. À noite, devorava Tolstoi, Shakespeare, Victor Hugo, Anatole France, Émile Zola e Marx. Aprendeu (e falou fluentemente) francês, inglês, alemão, russo e chinês. E escreveu versos. E tornou-se comunista escrevendo para o jornal do PC Francês. E, estudando em Moscou, conheceu o grande Lênin. E marchou para lutar pela libertação de sua terra e de seu povo. E escreveu uma história de simplicidade e grandeza, dessas que enobrecem o gênero humano.
Não faria mal – ao contrário, faria um bem enorme – se as novas gerações (que estão se formando e carecem de inspirações modelares) prestassem mais atenção a figuras maiúsculas como a de Ho Chi Minh, não no sentido de cópia de personalidade ou de reprodução de circunstâncias históricas irrepetíveis, mas como absorção de certos traços morais basilares, do desprendimento, da sensibilidade que o conduziu à poesia, da profunda consciência de seu tempo e seus desafios, da capacidade de entregar-se conscientemente à epopeia libertadora do seu povo. Alguém disse que Ho Chi Minh era de uma geração de líderes que possuíam a estatura da história. Por isso as reverberações de sua existência e de sua luta transpassam o tempo e vêm iluminar o áspero nascedouro deste século de misérias. Que chegue a muitos estes ecos de grandeza e generosidade.
Eu estava clandestino em Piracicaba, no interior de São Paulo, quando Ho Chi Minh morreu. Tinha 19 anos, lutava contra a ditadura e escrevi o poema “Glória Eterna ao Presidente Ho no Coração dos Povos”. Perdeu-se o poema nos desvãos da vida subterrânea. Não lhe recordo uma linha sequer, exceto o título. Mas a imagem do Presidente Ho, seu legado paradigmático, tudo o que sua vida encerrou de transformador e revolucionário, de sonho e de busca, mais que o poema singelo, é marca a ferro a moldar a alma para sempre.
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Jornalista e escritor em Curitiba, representa no Paraná a Fundação
Maurício Grabois e é autor de “As moças de Minas”, “Memória de Neblina”,
“Sonhos, utopias e armas” e “Vidas, veredas: paixão”.
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