quinta-feira, 12 de março de 2020

Corona vírus confirma que EUA são um Estado fracassado 12/03/2020

por Margaret Kimberley [*]
Os Estados Unidos não têm nenhum dos sistemas ou infraestruturas que lhe permitam cumprir aquilo que fez a China para combater a infecção em massa.

A única coisa mais assustadora do que o propagar do vírus COVID-19 por todo o mundo é o conhecimento de que este país está aflitivamente despreparado para proteger o seu povo. A resposta à epidemia seria divertida se não fosse tão perigosa. Primeiro, o regime de austeridade cortou nos Centros para o Controle de Doenças (CDC), divisão responsável pelo combate ao surto de doenças infecciosas. Mas condenar a decisão tomada por Donald Trump é a parte fácil. Analisar questões maiores respeitantes a cuidados de saúde e as ineficiências inerentes criadas pelo capitalismo é muito mais difícil.

Dizem-nos constantemente que o socialismo não funciona. Mas é a China socialista, onde começou o vírus, que tem feito o maior avanço para desacelerar a sua propagação. Inversamente, os Estados Unidos não têm nenhum dos sistemas ou infraestruturas que lhe permitiriam fazer a mesma coisa. É o capitalismo que não funciona bem quando necessidades humanas devem ser atendidas.

Procura-se constantemente designar os Estados Unidos como o melhor país do mundo e com o melhor sistema de cuidados de saúde do mundo. De facto, os cuidados de saúde aqui está muito longe de ser o melhor. O sistema voltado para o lucro certamente colecta cash para companhias de seguros e para a big pharma. Mas os resultados dos cuidados de saúde são medíocres no melhor dos casos e outros países fazem um trabalho muito melhor por muito menos dinheiro. As necessidades básicas da maior parte dos pacientes e dos trabalhadores em cuidados de saúde muitas vezes não são atendidas. Trabalhadores em cuidados de saúde queixam-se de que não receberam treino adequado para protegerem-se a si próprios quando tratam pacientes com COVID-19.

Enquanto a Itália, outro país capitalista, foi colocado em zona proibida por causa do alto número de casos COVID-19, a China relata declínios em novas infecções e melhorias em protocolos de tratamento. Enquanto americanos não podem encontrar desinfectante de mãos a qualquer preço, o governo chinês construiu novos hospitais num período de apenas uma semana.

O motivo do lucro que é constantemente apregoado como a cura para toda situação é, ao invés, a causa de todo problema. Há outros países que permitem a operação de seguradoras privadas de saúde mas eles regulam quanto dinheiro elas podem ganhar e como podem operar.

O assim chamado grande país não deixa passar nenhuma oportunidade para permitir os predadores extraírem [lucros] das suas vítimas. O estado fracassado não possui os testes necessários para diagnosticar o COVID-19 e àqueles que conseguem ser testados e tratados podem ter de pagar até US$3.000 pelo que deveria ser um direito e livre de encargos.

Quase toda solução apresentada para tratar desta crise coloca os fardos sobre o povo. A economia do espectáculo e dos empregos de baixos salários horários não permite aos trabalhadores terem tempos livres se sentirem doentes. O alto preço dos cuidados de saúde é um impedimento para o trato de todas as espécies de doenças. O homem a quem o establishment do Partido Democrata quer que seja o próximo presidente alardeia que vetaria qualquer esforço para proporcionar cuidados gratuitos de saúde para todos. Não é de admirar que os americanos fiquem atrás em todas as medidas de boa saúde e de pânico quando surge uma nova doença comunicável.

Enquanto o altamente apregoado sistema capitalista não pode proporcionar suficientes desinfectantes de mãos, o governador de Nova York saiu-se com uma solução. Andrew Cuomo anunciou que o estado produzir desinfectantes de mãos fabricados pelo trabalho prisional. O produto, chamado NYS Clean, será providenciado às agências públicas no estado. Aos condenados na Great Meadow Correctional Facility são pagos entre 16 e 65 centavos pelo seu trabalho. É típico dos Estados Unidos voltar-se para o seu sistema mais explorador para atender uma necessidade básica.

A ironia é perceptível para qualquer um que preste atenção. O país líder corta os recursos públicos que teriam mitigado os efeitos do COVID-19, continua seu sistema lucrativo que provoca sofrimentos mesmo quando é suposto que traga saúde e então utiliza o trabalho escravo nas prisões para fazer o que o tão louvado sistema não pode.

Donald Trumpo, de forma memorável, referiu-se às nações do sul global como "países buracos de merda" ("shithole countries"). De facto o país buraco de merda é aquele que ele governa. Os Estados Unidos distinguem-se por colocar pessoas por trás das grades, como os condenados de Nova York podem atestar. Ele pode fabricar armas e invadir nações. A polícia mata mais pessoas e o custo dos cuidados de saúde é o pior do mundo. Mas ai de nós, se precisarmos salvar nossas vidas de doenças. O COVID-19 é uma nova doença que apresenta novos problemas, mas este país não se importa com o seu povo mesmo no melhor dos tempos. O COVID-19 está mais uma vez a deixar isso claro.
11/Março/2020

[*] Margaret.Kimberley@BlackAgendaReport.com

O original encontra-se em mronline.org/...


Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .


https://resistir.info/eua/kimberley_11mar20.html

Crise de oferta, crise de procura e crise da política económica 12/03/2020

por Jorge Bateira [*]

A Comissão Europeia decidiu flexibilizar as regras orçamentais para que os Estados-membros possam gastar mais (aumentar os défices que, por efeito da recessão, serão de qualquer modo maiores), e foi buscar aos restos dos fundos comunitários algum financiamento para investimento. Com muitos outros economistas, entendo que não é a intervenção, em escala e qualidade, que esta crise exige.

Antes de mais, é preciso dizer que política monetária é ineficaz para esta crise, tal como já o foi para retirar a zona euro do marasmo da crise financeira anterior. O foco da política não pode ser nas empresas (custos, financiamento); tem de ser na procura que as sustenta. E de nada serve sustentar temporariamente empresas que já estavam mal a pretexto de evitar o desemprego. O foco tem de ser na criação de emprego através de um Serviço Nacional de Emprego que identifique as necessidades dos territórios e financie (com salário digno e descontos para a SS) os postos de trabalho que vão acolher os desempregados.

O que os Estados-membros vão fazer é gastar o dinheiro apressadamente em obras que vão ser adjudicadas de forma duvidosa (para ser rápido, como na Parque Escolar com Sócrates) e cujos orçamentos vão ser empolados e gerar lucros que não estimulam o consumo e o emprego. Noutro dia falarei sobre o que deve ser uma política de pleno emprego verdadeiramente Keynesiana, bem diferente de gastar dinheiro apressadamente.

O gráfico mostra a interdependência entre a crise da oferta que estamos a viver e a crise da procura que dela decorre. Mostra como esta última vai agravar a primeira, gerando-se um círculo vicioso que, para ser rompido, exige uma intervenção forte, em larga escala, direccionada para o emprego porque é aí que está a procura que sustenta as empresas no mercado interno.

Para não sobrecarregar a figura, a vertente externa não foi considerada. Se a pandemia tiver proporções dramáticas nos EUA, e se a estratégia da Rússia de rebentar com a indústria do petróleo de xisto, fazendo baixar os preços, tudo isso vier a produzir uma grave crise nesse país, então haverá repercussões importantes sobre a Europa, com efeitos negativos sobre as nossas exportações que agravarão os efeitos da crise do vírus.

As intervenções previstas pela CE e Estados-membros terão seguramente algum efeito amortecedor mas, a meu ver, vão ficar muito aquém do que é necessário e não serão dirigidas à fonte da procura, os trabalhadores. Ainda por cima, há uma herança muito negativa da crise financeira e da intervenção desastrosa da troika.

Nota: nem todas as setas significam agravamento da crise; as relacionadas com a baixa do preço dos combustíveis e com a intervenção da CE, são factores de atenuação da crise.
11/Março/2020

[*] Economista

O original encontra-se em
ladroesdebicicletas.blogspot.com/2020/03/crise-de-oferta-crise-de-procura-e.html


Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .


https://resistir.info/crise/bateira_11mar20.html

sábado, 7 de março de 2020

Plano "Mais Brasil" (para banqueiros) 07/03/2020

por Maria Lucia Fattorelli [*] e Rodrigo Ávila
Recentemente, Bolsonaro entregou ao Senado um pacote batizado de "Plano Mais Brasil", contendo três novas Propostas de Emenda à Constituição – PEC nº 186, 187 e 188/2019.

O pacote deveria ser chamado de "Mais Brasil para Banqueiros", pois as medidas escancaram o privilégio dos gastos com a chamada dívida pública, que nunca foi auditada como manda a Constituição de 1988.

Para que sobrem mais recursos para os gastos com a questionável dívida pública, os investimentos sociais urgentes para o país são postos de lado, consolidando ainda mais a posição do Estado brasileiro a serviço do grande capital rentista – ou seja, de grandes bancos e investidores.

Tais medidas pretendem inserir na Constituição Federal mais restrições ainda aos Direitos Sociais, acompanhadas de mais garantias aos rentistas, enquanto vemos o aumento do número de bilionários, e o lucro dos bancos bate novo recorde a cada trimestre.

No Chile, essa redução de políticas públicas e a ausência do Estado em áreas essenciais para a garantia de serviços públicos à população tem sido a causa das grandes manifestações que acabaram obrigando o governo a rever tais políticas e passar a priorizar algumas demandas do povo.

O Pacote de Guedes/Bolsonaro ameaça diretamente conquistas históricas da população, fragilizando o artigo 6º da Constituição, que garante Direitos Sociais a todos os brasileiros e brasileiras. Se aprovado o pacote, esse artigo ficará condicionado a um "equilíbrio fiscal intergeracional", ou seja, só terá que ser cumprido após o pagamento dos gastos com a questionável dívida pública.

O pacote prevê também que leis, atos ou decisões judiciais que impliquem despesa somente produzirão efeitos quando houver a "respectiva e suficiente dotação orçamentária". Tal limite nunca existiu para os privilegiados gastos com a dívida pública: se necessário, ocorre a emissão e venda de novos títulos públicos para o pagamento de juros nominais da dívida, apesar de ser inconstitucional (art. 167, III)!

Também fazem parte do pacote a redução de salário dos servidores públicos em até 25%, assim como diversos impedimentos a quaisquer benefícios para os servidores.

Por outro lado, além dos gastos financeiros com a dívida continuarem sem limite ou controle algum, o pacote ainda deixa explícita a utilização do estoque de centenas de bilhões de reais da Conta Única do Tesouro (vinculados a áreas sociais) para pagamento da dívida pública, confirmando a denúncia feita pela Auditoria Cidadã da Dívida, de que o governo tem muito dinheiro em caixa, mas essa montanha de dinheiro é reservada somente para o pagamento da dívida pública.

O pacote acaba com os Planos Plurianuais e o Orçamento Anual, estabelecendo-se o "Orçamento Plurianual", o que aumentará ainda mais a blindagem de recursos para o pagamento aos privilegiados rentistas.

O governo assume que a dívida ocupa o centro das decisões econômicas, e todas as demais políticas fiscais dependerão de sua "sustentabilidade", como previsto textualmente: "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios conduzirão suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis que assegurem sua sustentabilidade" e que "A elaboração e a execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida".

Nesse sentido, o pacote aumenta o arrocho fiscal para privilegiar a dívida. Em vez de auditar a questionável dívida (que até o TCU já declarou que não serviu para investimentos no país); estabelecer juros negativos, e direcionar recursos para investimentos produtivos que gerem crescimento socioeconômico, o governo reza na cartilha do retrógrado "Pensamento Único" que corta investimentos sociais, aplica contra-reformas como a da previdência, e privatiza tudo para transferir recursos aos privilegiados rentistas.

O cumprimento de todas as exigências desse pacote será monitorado por um novo órgão que está sendo criado: Conselho Fiscal da República, formado pelo Presidente da República, da Câmara, do Senado, do STF, do TCU, três governadores e três prefeitos. É o fim do federalismo, pois estados e municípios perdem a sua autonomia e ainda ficarão amarrados às limitações absurdas impostas pelo pacote.

Apesar de ser apresentado como uma recuperação do Pacto Federativo, o pacote prevê também o fim da compensação das perdas dos estados com a Lei Kandir e das ações judiciais relativas ao tema, em troca de um suposto recurso a mais para estados e municípios. Porém, tal recurso adicional é apenas uma promessa vaga, pois ele ainda será condicionado à execução de determinadas políticas que não se encontram detalhadas no pacote. Quais políticas? Seria o ajuste fiscal? A implementação de outras reformas da previdência? A privatização de mais empresas estatais? O corte de investimentos sociais?

Outro absurdo é a disputa entre os direitos sociais: União, Estados, DF ou municípios terão que escolher entre aplicar em saúde ou educação. Segundo o pacote, se os entes federados aplicarem em saúde mais que o piso exigido, poderão deduzir este valor do piso de recursos destinados à educação, e vice-versa. Com o congelamento do teto, essas áreas sociais terão que disputar recursos, o que significa redução nos recursos destas áreas sociais essenciais.

O pacote ainda corta medidas destinadas à redução das desigualdades regionais. Por exemplo, desobriga o poder público de investir prioritariamente na expansão de sua rede de ensino na localidade em que haja falta de vagas, ou de aplicar no Nordeste (preferencialmente no semi-árido) no mínimo 50% do valor destinado a irrigação no país.

Essa breve análise do pacote mostra mais uma vez que o Sistema da Dívida precisa ser enfrentado, pois não há limite para os privilégios dos rentistas que, além de tudo isso, querem se apoderar diretamente dos impostos que pagamos por meio da chamada "Securitização de Créditos Públicos" (PLP 459/2017 e PEC 438/2018)!

A ferramenta eficaz para enfrentar esse privilégio abusivo do Sistema da Dívida é a auditoria integral, realizada com ampla transparência e participação da sociedade que tem pago essa elevada conta!
07/Janeiro/2020

[*] Coordenadora nacional da "Auditoría da Dívida Cidadã", www.auditoriacidada.org.br

O original encontra-se em http://www.cadtm.org/Plano-Mais-Brasil-escancara-privilegio-da-Divida


Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .


https://resistir.info/brasil/fattorelli_07jan20.html

sexta-feira, 6 de março de 2020

Não, o coronavirus não é o responsável pela queda das cotações bolsistas 06/03/2020

por Eric Toussaint [*]
Assiste-se a uma grande crise das bolsas da Wall Street, da Europa, do Japão e de Shangai e alguns atribuem a responsabilidade ao coronavirus. Na última semana de Fevereiro/2020, a pior semana desde Outubro/2008, o Dow Jones baixou 12,4%, o S&P 500 baixou 11,5% e o Nasdaq Composite baixou 10,5%. O mesmo cenário na Europa e na Ásia durante a última semana de Fevereiro. Na bolsa de Londres, o FTSE-100 baixou 11,32%, em Paris o CAC40 caiu 12%, em Francoforte o DAX perdeu12,44%, na bolsa de Tóquio o Nikkei baixou 9,6%, as bolsas chinesas (Shangai, Shenzhen e Hong Kong) baixaram igualmente.

Na segunda-feira 2/Março, a seguir a (promessas de) intervenções maciças dos bancos centrais para sustentar as bolsas, os índices retomaram a alta salvo na de Londres. Na terça-feira 3/Março, o banco central dos Estados Unidos, o Fed, entrou em pânico, baixou em 0,5% sua taxa directora, o que constitui uma redução considerável. A nova taxa directora do Fed situa-se doravante num intervalo de 1 a 1,25%. É preciso saber que a taxa de inflação nos Estados Unidos entre Fevereiro/2019 e Janeiro/2020 atingiu 2,5%, o que quer dizer que a taxa de juro real do FED é negativa. A grande imprensa escreve que esta medida visa sustentar a economia americana ameaçada pela epidemia COVID-10. O diário francês Le Figaro titula: "O coronavirus precipita uma forte baixa da taxa directora do Fed" ( www.lefigaro.fr/... ver também em inglês edition.cnn.com/... ).

Ora, a má saúde da economia americana data de bem antes dos primeiros casos de coronavirus na China e destes efeitos sobre a economia mundial (ver www.cadtm.org/... ). Em resumo, o Fed e a grande imprensa não dizem a verdade quando explicam que a medida é destinada a enfrentar o coronavirus. Apesar da decisão do Fed, na terça-feira 3/Março o S&P 500 baixou novamente 2,81%, o Dow Jones baixou 2,9% ( edition.cnn.com/2020/03/03/investing/dow-stock-market-today/index.html ). Nos dias 3 e 4 de Março, várias bolsas asiáticas experimentaram igualmente uma baixa. Não se pode excluir uma reascensão da bolsa de Nova York em 4/Março para saudar o retorno de Joe Biden à corrida presidencial nos Estados Unidos aquando das primárias democratas de 3/Março pois isto representa para eles um alívio frente a Bernie Sanders, que entretanto continua à frente. Joe Biden é claramente o candidato do establishment democrata e dos miliardários que apoiam este partido. De notar igualmente que Donald Trump, num tweet da semana passada, ligou a sua sorte àquela da bolsa na Wall Street. Em 26/Fevereiro ele conclamou seus colegas dos 1% mais ricos a não venderem suas acções e a sustentarem a bolsa. Ele além disso afirmou que se fosse reeleito à presidência dos Estados Unidos em Outubro/2020 a bolsa ascenderia enormemente mas que se perdesse assistir-se-á a um crash bolsista de uma amplitude nunca vista (segundo o Financial Times, Trump anunciou que "The market will 'jump milhares e milhares de pontos se eu vencer', ... "and if I don't, you're going to see a crash like you've never seen before. I really mean it". www.ft.com/content/399783e2-57e9-11ea-a528-dd0f971febbc ). O que se vai passar precisamente nos mercados bolsistas nos próximos dias e semanas é imprevisível mas é muito importante analisar as verdadeiras causa da crise financeira em curso.

Os grandes media afirmam de maneira ultra simplificadora que esta queda generalizada das bolsas de valores é provocada pelo coronavirus e esta explicação é retomada amplamente nas redes sociais. Ora, não é o coronavirus e sua expansão que constituem a causa da crise, a epidemia é apenas um elemento detonador. Todos os factores de uma nova crise financeira estão reunidos há vários anos, pelo menos desde 2017-2018 (ver www.cadtm.org/Tout-va-tres-bien-madame-la datado de Novembro/2017, www.cadtm.org/Tot-ou-tard-il-y-aura-une-nouvelle-crise-financiere datado de Abril/2018, ver mais recentemente pour.press/... ). Quando a atmosfera está saturada de matérias inflamáveis, a qualquer momento uma fagulha pode provocar a explosão financeira. Era difícil prever de onde a fagulha iria partir. A fagulha desempenha o papel de detonador mas não é ela que é a causa profunda da crise. Não sabemos ainda se a forte queda bolsistas do fim de Fevereiro/2020 vai "degenerar" numa enorme crise financeira. É uma possibilidade real. O facto de que a queda bolsista coincide com os efeitos da epidemia do coronavirus sobre a economia produtiva não é fortuito, mas dizer que o coronavirus é a causa da crise é uma contra-verdade. É importante ver de onde vem realmente a crise e não ser enganado pelas explicações que lançam uma cortina de fumo diante das causas reais.

O Grande Capital, os governantes e os media a seu serviço têm todo o interesse nas costas de um vírus o desenvolvimento de uma grande crise financeira e económica, pois isto lhes permite lavar as mãos (desculpem-me a expressão).

A queda das cotações bolsistas estava prevista bem antes que o coronavirus fizesse a sua aparição.

As cotações das acções e o preço dos títulos de dívida (também chamados obrigações ) aumentaram de um modo totalmente exagerado em relação à evolução da produção no decorrer dos últimos dez anos, com uma aceleração no decorrer dois últimos dois ou três anos. A riqueza dos 1% mais ricos também cresceu fortemente pois ela está baseada amplamente no crescimento dos activos financeiros.

É preciso sublinhar que o momento em que intervém a queda das cotações bolsistas é o resultado de uma escolha (não falo de complot): uma parte dos muito ricos (o 1%, o Grande Capital) decidiu começar a vender as acções que adquiriu pois considera que toda festa financeira tem um fim e, ao invés de a sofrer, ele prefere tomar a dianteira. Estes grandes accionistas preferem ser os primeiro a vender a fim de obterem os melhores preços possíveis antes de a cotação das acções baixar muito fortemente. Grandes sociedade de investimentos, grandes bancos, grandes empresas industriais e miliardários dão a ordem aos traders para venderem uma parte das acções ou do títulos de dívidas privadas (ou seja, obrigações) que possuíam a fim de embolsar os 15% ou 20% de alta dos últimos anos. Eles dizem que é o momento de fazê-lo: chamam a isto tomar os "seus ganhos". Segundo eles, tanto pior se isto implica um efeito de venda em manada. O importante ao seu ver é vender antes dos outros. Isto pode provocar um efeito dominó e degenerar numa crise generalizada. Eles o sabem e dizem para si próprios que acabarão por se safar sem demasiado prejuízo como aconteceu para grande número dentre eles em 2007-2009. É o caso nomeadamente nos Estados Unidos dos dois principais fundos de investimento e de gestão de activos Black Rock e Vanguard que se saíram bem, assim como do Goldman Sachs, Bank of America, Citigroup ou a Googloe, Apple, Amazon, Facebook, etc.

Outro elemento importante a sublinhar: os 1% vendem acções de empresas privadas, o que provoca uma queda das suas cotações e arrasta a queda das bolsas. Ou ao mesmo tempo eles compram títulos da dívida pública considerados como valores seguros. É nomeadamente o caso nos Estados Unidos onde o preço dos títulos do tesouro estado-unidense aumentou na sequência de uma procura muito forte. De notar que um aumento do preço dos títulos do tesouro que se vendem no mercado secundário tem como consequência baixar o rendimento destes títulos. Os ricos que compram estes títulos do Tesouro estão dispostos a um rendimento fraco, pois o que procuram é a segurança num momento em que a cotação das acções das empresas está em baixa. Em consequência, há que sublinhar que mais uma vez são exactamente os títulos dos Estados que são considerados pelos mais ricos como os mais seguros. Mantenhamos isto na cabeça e estejamos prontos a dizê-lo publicamente pois há que esperar que dentro em breve retorne o refrão bem conhecido da crise das dívidas pública e dos temores dos mercados em relação a títulos públicos.

Mas vejamos outra vez o que se passa repetitivamente desde há pouco mais de trinta anos, ou seja, desde o aprofundamento da ofensiva neoliberal e da grande desregulamentação dos mercados financeiros [1] : o Grande Capital (os 1%) reduziu a parte que ele investe na produção e aumentou a parte que ele põe em circulação na esfera financeira (isto inclui o caso de uma firma "industrial" emblemática como a Apple). Ele fez isso no decorrer dos anos 1980 e isso produziu a crise do mercado obrigacionista de 1987. Ele fez mais uma vez isso no fim dos anos 1990 e isso produziu a crise das dot-com e da Enron em 2001. Ele refez isso entre 2004 e 2007 e isso produziu a crise das subprimes, dos produtos estruturados e uma série de falências fulminantes como a do Lehman Brothers em 2008. Desta vez, o Grande Capital especulou principalmente com a alta dos preços das acções em bolsa e com o preço dos títulos da dívida no mercado obrigacionista (ou seja, o mercado onde vendem as acções das empresas privadas e os títulos de dívidas emitidos pelos Estados e outros poderes públicos). Dentre os factores que provocaram a alta extravagante dos preços dos activos financeiros (acções em bolsas e títulos de dívidas privadas e públicas), é preciso considerar a acção nefastas dos grandes bancos centrais desde a crise financeira e económica de 2007-2009. Analisei isto em www.cadtm.org/... .

Portanto, este fenómeno não data da véspera da crise de 2008-2009, ele é recorrente no quadro da financiarização da economia capitalista. E antes disso o sistema capitalista também havia experimentado fases importantes de financiarização, tanto no século XIX como nos anos 1920, o que conduziu à grande crise bolsista de 1929 e ao período prolongado de recessão dos anos 1930. Assim, o fenómeno da financiarização e desregulamentação foi parcialmente abafado durante 40 anos após a grande depressão dos anos 1930, a Segunda Guerra Mundial e a radicalização da luta de classes que se seguiu. Até o fim dos anos 1970, não houve mais grandes crises bancárias ou bolsistas. As crises bancárias e bolsistas ressurgiram quando os governos deram todas as liberdades ao Grande Capital para fazer o que quisesse no sector financeiro.

Retornemos à situação dos últimos anos. O Grande Capital, o qual considera que a taxa de rentabilidade que ele extrai da produção não é suficiente, desenvolve as actividades financeiras não directamente ligadas à produção. Isto não quer dizer que ele abandone a produção, mas que desenvolve proporcionalmente mais as suas aplicações na esfera financeira do que os seus investimentos na esfera produtiva. É o que se chama a financiarização ou a mundialização financiarizada. O capital "faz lucro" a partir do capital fictício por actividades grandemente especulativas. Este desenvolvimento da esfera financeira aumentar o recurso ao endividamento maciço das grandes empresas e inclusive firmas como a Apple (escrevi uma série de artigos acima www.cadtm.org/... ).

O capital fictício é uma forma do capital, ele se desenvolve exclusivamente na esfera financeira sem verdadeira ligação à produção (ver caixa: O que é o capital fictício?). É fictício no sentido de que não repousa directamente sobre a produção material e sobre a exploração directa do trabalho humano e da natureza. Digo bem exploração directa pois evidentemente o capital fictício especula sobre o trabalho humano e sobre a natureza, o que geralmente degrada as condições de vida dos trabalhadores e da própria natureza.

O que é o capital fictício?

"O capital fictício é uma forma de capital (títulos da dívida pública, acções, créditos) que circula ao passo que os rendimentos da produção aos quais ele dá direito não são senão promessas cujo desfecho é por definição incerto". Entrevista com Cédric Durand realizada por Florian Gulli, "Le capital fictif, Cédrid Durand", La Revue du projet: projet.pcf.fr/70923 .

Segundo Michel Husson, "o quadro teórico de Marx permite-lhe a análise do 'capital fictício', o qual pode ser definido como o conjunto dos activos financeiros cujo valor repousa sobre a capitalização de um fluxo de receitas futuras: "Chama-se capitalização a constituição do capital fictício" [Karl Marx, O Capital, Livro III]. Se uma acção proporciona um rendimento anual de 100£ e a taxa de juro é de 5%, seu valor capitalizado será de 2000£. Mas este capital é fictício, na medida em que "não lhe resta absolutamente nenhum traço de uma relação qualquer com o processo real de valorização do capital" [Karl Marx, O Capital, Livro III]. Michel Husson, "Marx et la finance: une approche actuelle", À l'Encontre, Dezembro/2011, alencontre.org/economie/marx-et-la-finance-une-approche-actuelle.html

Para Jean-Marie Harribey: "As bolhas explodem quando o afastamento entre valor realizado e valor prometido se torna demasiado grande e certos especuladores compreendem que as promessas de liquidação lucrativa não poderão ser honradas para todos; por outras palavras, quando as mais-valias financeiras jamais poderão ser realizadas por falta de mais-valia suficiente na produção". Jean-Marie Harribey, "A inconsistência do capital fictíci, leitura do Capital fictif de Cédrid Durand", Les Possibles, Nº 6, Primavera 2015. france.attac.org/...

Ler igualmente François Chesnais, "Capital fictício, ditadura dos accionistas e dos credores: questões do momento presente", Les Possibles, Nº 6, Primavera 2015: france.attac.org...

Estou de acordo com Cédric Durand quando ele afirma: "Uma das consequências políticas importantes desta análise é que a esquerda social e política deve tomar consciência do conteúdo de classe da noção de estabilidade financeira. Preservar a estabilidade financeira é actuar de modo a que as pretensões do capital fictício se realizem. Para libertar nossas economias do império do capital fictício, precisamos nos empenhar numa desacumulação financeira. Concretamente, isto remete de modo claro para a questão da anulação das dívidas pública e da dívida privada das famílias modestas, como também para a diminuição dos rendimentos de accionistas, o que se traduz mecanicamente por uma diminuição da capitalização bolsista. Não nos enganemos, tais objectivos são muito ambiciosos: eles implicam inelutavelmente socializar o sistema financeiro e romper com a liberdade de circulação do capital. Mas eles permitem dominar precisamente certas condições indispensáveis para virar a página do neoliberalismo". Cédrid Durand, "Sobre o capital fictício, Resposta a Jean-Marie Harribey", Les Possibles, Nº 6, Primavera 2015: france.attac.org/
O capital fictício deseja captar uma parte da riqueza produzida na produção (os marxistas dizem uma parte da mais-valia produzida pelos trabalhadores na esfera da produção) sem sujar as mãos, ou seja, sem passar pelo facto de ser investido directamente na produção (sob a forma de compra de máquinas, matérias-primas, pagamento da força de trabalho humana sob a forma de salários, etc). O capital fictício é uma acção cujo possuidor espera que lhe traga um dividendo. Ele comprará uma acção Renault se esta prometer um bom dividendo mais poderá também revender esta acção para comprar uma acção General Electric ou Glaxo Smith Kline ou Nestlé ou Google se esta prometer um melhor dividendo. O capital fictício é também uma obrigação de dívida emitida por uma empresa ou um título da dívida pública. É também um derivado, um produto estruturado... O capital fictício pode dar a ilusão de que gera lucros por si mesmo ainda que estando destacado da produção. Os traders, os brokers ou dirigentes das grandes empresas estão convencidos de que "produzem". Mas, num certo momento, uma crise brutal explode e uma massa de capitais fictícios esfuma-se (queda das cotações bolsistas, quedas dos preços no mercado obrigacionista, queda dos preços do imobiliário...).

O Grande Capital, de maneira repetida, quer acreditar ou fazer acreditas que ele é capaz de transformar o chumbo em ouro na esfera financeira, mas de maneira periódica a realidade chama-o à ordem e a crise explode.

Quando a crise explode é preciso distinguir entre o elemento detonador de uma parte (hoje, a pandemia do coronavirus pode constituir o detonador) e as causas profundas, de outra parte.

No decorrer das últimas duas década houve um enfraquecimento muito importante da produção material. Em várias grandes economias como as da Alemanha, do Japão (último trimestre de 2019), da França (último trimestre 2019) e da Itália, a produção industrial recuou ou enfraqueceu-se fortemente (China e Estados Unidos). Certos sectores industriais que haviam experimentado um ressurgimento após a crise de 2007-2009, como a indústria do automóvel, reentraram numa crise muito forte nos anos 2018-2019 com uma queda muito importante das vendas e da produção. A produção na Alemanha, o principal construtor automóvel mundial, baixou 14% entre Outubro/2018 e Outubro/2019 [2] . A produção automóvel caiu fortemente em França em 2020. A produção de outra jóia da economia alemã, o sector que produz as máquinas e os equipamentos, baixou 4,4% só no mês de Outubro/2019. É caso igualmente do sector da produção de máquinas-ferramenta e de outros equipamentos industriais. O comércio internacional estagnou. Num período mais longo, a taxa de lucro baixou ou estagnou na produção material, os ganhos de produtividade também baixaram.

Em 2018-2019, estes diferentes fenómenos da crise económica na produção manifestaram-se muito claramente, mas como a esfera financeira continuava a funcionar em regime pleno, os grandes media e os governos faziam tudo para afirmar que a situação era globalmente positiva e que aqueles e aquelas que anunciavam uma próxima grande crise financeira acrescentando-se ao nítido abrandamento da produção eram apenas profetas da desgraça.

O ponto de vista de classe social também é muito importante: para o Grande Capital, enquanto a roda da fortuna na esfera financeira continuar a girar, os jogadores permanecem na pista e felicitam-se pela situação. Passa-se o mesmo para todos os governantes pois actualmente eles estão ligados ao Grande Capital, tanto nas velhas economias industrializadas como a América do Norte, a Europa ocidental ou o Japão como na China, na Rússia ou nas outras grandes economias ditas emergentes.

Apesar do facto de que em 2019 a produção real cessou de crescer de maneira significativa ou começou a estagnar ou a baixar, a esfera financeira continuou a sua expansão: as cotações em bolsa continuaram a aumentar, atingiram mesmo topos, o preço dos títulos das dívidas privadas e públicas continuou a sua progressão para o alto, o preço do imobiliário recomeçou a crescer numa série de economias, etc.

Em 2019, a produção enfraqueceu (China e Índia), estagnou (uma boa parte da Europa) ou começou a baixar no segundo semestre do ano (Alemanha, Itália, Japão, França) nomeadamente porque a procura global baixou: a maior parte dos governos e do patronato intervêm para fazer baixar os salários, as pensões, o que reduz o consumo pois o endividamento das famílias, em aumento, não basta para aliviar a baixa de rendimentos. Da mesma forma, os governos prolongam uma política de austeridade que implica uma redução das despesas públicas e dos investimentos públicos. A conjunção da queda do poder de compra da maioria da população e a baixa das despesas públicas implicam uma queda da procura global e, portanto, uma parte da produção não encontra saídas suficientes, o que implica uma baixa da actividade económica [3] .

É importante precisar em que ponto de vista se situa: falo de crise da produção não porque sou um adepto do crescimento da produção. Sou pela organização (a planificação) do decrescimento a fim de responder nomeadamente à crise ecológica em curso. Portanto, pessoalmente, a queda ou a estagnação da produção a nível mundial não me aflige, ao contrário. Esta muito bem se se produzem menos carros individuais e se as suas vendas caírem. Em contrapartida, para o sistema capitalista, não se passa o mesmo: o sistema capitalista tem necessidade de desenvolver sem cessar a produção e de conquistar sem cessar novos mercados. Quando ele não consegue ou quando começa a atrasar-se, responde à situação desenvolvendo a esfera da especulação financeira e emitindo cada vez mais capitais fictícios não ligados directamente à esfera produtiva. Isto parece funcionar durante anos e depois, num momento dado, as bolhas especulativas explodem. Em vários momentos da história do capitalismo a lógica da expansão permanente do sistema capitalista e da produção exprimiu-se por guerra comerciais (e é novamente o caso hoje, nomeadamente entre os Estados Unidos e os seus principais parceiros) ou por guerras verdadeiras e esta questão hoje não está de todo excluída.

Se se situa do ponto de vista das classes sociais exploradas e espoliadas que constituem a esmagadora maioria da população (daí a imagem dos 99% opostos aos 1%), é claro que a conclusão é de que é preciso romper radicalmente com a lógica da acumulação de capital quer ele seja produtivo ou financeiro, ou produtivo financiarizado, pouco importam os nomes. É preciso encetar de imediato e planificar de maneira urgente o decrescimento para combater a crise ecológica. É preciso produzir menos e melhor. A fabricação de certos produtos vitais para o bem-estar da população deve crescer (construções e renovações de habitações decentes, transportes colectivos, centros de saúde e hospitais, distribuição de água potável e tratamento das águas residuais, escolas, etc) e outras produções devem baixar radicalmente (viaturas individuais) ou desaparecer (fabricação de armas). É preciso reduzir radicalmente brutalmente as emissões de gás de efeito estufa [NR] . É preciso reconverter toda uma série de indústrias e de actividades agrícolas. É preciso anular uma grande parte das dívidas pública e, em certos casos, a totalidade destas. É preciso expropriar sem indemnização e transferir para o serviço público os bancos, as seguradoras, o sector da energia e outros sectores estratégicos. É preciso atribuir outras missões e outras estruturas aos bancos centrais.

Existem outras medidas, tais como a execução de uma reforma fiscal global com uma forte tributação do capital, uma redução global do tempo de trabalho com empregos compensatários e a manutenção dos níveis de salário, a gratuidade dos serviços de saúde pública, educação, transportes públicos, medidas eficazes para garantir a igualdade entre os sexos. É preciso repartir as riquezas respeitando a justiça social e fazendo primar os direitos humanos e o respeito dos frágeis equilíbrios ecológicos.

A grande massa da população que vê os seus rendimentos reais diminuírem ou estagnarem (o seja, o seu poder de compra real) compensa esta baixa ou esta estagnação pelo recurso ao endividamento a fim de manter seu nível de consumo e, inclusive, sobre questões vitais (como encher seu frigorífico, como garantir a escolaridade das crianças, como se deslocar para ir ao trabalho se for preciso comprar um carro por não haver transportes em comum, como pagar certos cuidados de saúde, etc). É preciso dar soluções radicais a este endividamento crescente de uma maioria da população nos quatro cantos do planeta e recorrer a anulações de dívida. É preciso portanto anular uma grande parte das dívidas privadas das famílias (nomeadamente das dívidas estudantis, as dívidas hipotecárias abusivas, as dívidas abusivas de consumo, as dívidas ligadas ao micro-crédito abusivo...). É preciso aumentar os rendimentos a maioria da população e melhorar fortemente a qualidade dos serviços públicos na saúde, educação, transportes colectivos, praticando a gratuidade.

Estamos confrontados com uma crise multidimensional do sistema capitalista mundial: crise económica, crise comercial, crise ecológica, crise de várias instituições internacionais que fazem parte do sistema de dominação capitalista do planeta (OMC, NATO, G7, crise no Fed – o banco central dos Estados Unidos –, crise no Banco Central Europeu), crise política nos países importantes (nomeadamente nos Estados Unidos entre os dois grandes partidos do grande capital), crise de saúde pública, guerras... No espírito de um grande número de pessoas em numerosos países, a rejeição do sistema capitalista é mais elevada do que nunca no decorrer das últimas cinco décadas, desde o princípio da ofensiva neoliberal sob Pinochet (1973), Thatcher (19798) e Reagan (1980).

A abolição das dívidas ilegítimas, esta forma de capital fictício, deve ser inscrita num programa muito mais vasto de medidas suplementares. O eco-socialismo deve ser posto no cerne das soluções e não deixado de lado. Devemos travar a luta contra a crise multidimensional do sistema capitalista e nos empenharmos resolutamente no caminho de uma saída ecologistda-feministra-socialista. Trata-se de uma necessidade absoluta e imediata.
04/Março/2020

[1] Ver Éric Toussaint, Bancocratie , 2014, chapitre 3 « De la financiarisation/dérèglementation des années 1980 à la crise de 2007-2008 ».
[2] A indústria automóvel alemã emprega 830 mil trabalhadores e 2 milhões de empregos conexos dela dependem directamente (Fonte: Financial Times, , « German industrial output hit by downturn », 7-8 décembre 2019).
[3] Quanto à explicação das crises, entre os economistas marxistas, "duas grandes escolas" se defrontam: aquela que explica as crises pelo sub-consumo das massas (a super-produção de bens de consumo); e aquela que as explica pela "super-acumulação" (a insuficiência do lucro para prosseguir a expansão da produção dos bens de equipament). Esta querela não é senão uma variante do velho debate entre os partidários da explicação das crises pela "insuficiêncvia da procura global" e os da explicação pela "desproporcionalidade". Ernest Mandel.  La crise 1974-1982. Les faits. Leur interprétation marxiste , 1982, Paris, Flammarion, 302 p. Na sequência de Ernest Mandel, considero que a explicação da crise actual deve ter em conta vários factores que não se podem reduzir ou a uma crise produzida pela super-produção de bens de consumo (e portanto uma insuficiência da procura) ou à super-acumulação de capitais (e portanto a insuficiência do lucro).

[NR] Um falso problema como resistir.info tem afirmado numerosas vezes.

Acerca do Capital fictício, ver também:

  • Verbete da Grande Enciclopédia Soviética
  • Reflexões sobre a crise , Remy Herrera
  • Crise: algumas perguntas e respostas , Jorge Figueiredo
  • Crises, os desenlaces possíveis , Jorge Figueiredo

  • O capital fictício, como a finança se apropria do nosso futuro , Daniel Vaz de Carvalho

    [*] Doutorado em ciências políticas pelas universidade de Liège e de Paris VIII, porta-voz do CADTM internacional e membro do Conselho científico do ATTAC França.

    O original encontra-se em www.cadtm.org/...


    Este artigo encontra-se em https://resistir.info/
  • https://resistir.info/financas/coronavirus_04mar20.html
  • terça-feira, 7 de maio de 2019

    A liberdade capitalista é só encenação, por Rob Larson


    13/3/2019, Rob Larson,* Jacobin Magazine
    Milton Friedman errou. O capitalismo não promove a liberdade. Só promove locais de trabalho que são autocracias e bilionários tirânicos [além de goiabeiras, Damares, pistoleiros e tarados elegíveis em geral (NTs)].
    _____________________________________

    Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga



    Consideradas todas as mudanças dos últimos 50 anos, é surpreendente que os clássicos conservadores tenham mantido tão alto prestígio. Capitalismo e Liberdade, de Milton Friedman e A estrada da Servidão de Friedrich Hayek ainda são oferecidos na livraria online de Breitbart. Rush Limbaugh diz aos seus ouvintes que “Milton Friedman deve ser a Bíblia para os jovens e para todos que tentem entender o capitalismo e os livres mercados.” Charlie Kirk, fundador de Turning Point USA, celebra Hayek e Friedman em seu livro, e Ben Shapiro cultiva Friedman como ícone conservador na National Review.[1] 

    Mas o que, então, são a liberdade e garantia de direitos [orig. liberty and freedom] que os conservadores celebram? E o capitalismo? Promove ou restringe tudo isso?

    "Garantir direitos" é tido em alta conta, porque, de algum modo, cobre todos os prazeres da vida – é a capacidade para fazer o que se queira, dentro dos limites das condições materiais e no tempo que nos é dado viver. Mas o modo como você gosta de passar seu tempo, quem você ama ou com quem você trabalha, ou com quem você ri, tudo isso representa também o tremendo valor do gozo de direitos sociais.

    Para John Stuart Mill, o princípio básico do gozo de direitos era que "o único objetivo para o qual o poder pode exercer-se corretamente sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade dele, é impedir o dano a outros.” O filósofo Isaiah Berlin, adiante, descreveu essa ideia como "liberdade negativa" ou ser livre de coerção. Berlin também sugeriu uma "liberdade positiva" – liberdade para fazer coisas diferentes, não apenas "ser livre das escolhas de outros". Em vez de perguntar "Que centros de poder me controlam,” a liberdade positiva pergunta "O que sou livre para fazer com as oportunidades e recursos do mundo?”

    A visão filosófica tradicional do capitalismo é que embora não ofereça "liberdade positiva" de acesso a uma porção justa da produção mundial de bens, o capitalismo oferece "liberdade negativa" da tirania econômica, deixando consumidores e trabalhadores livres para escolher entre vários itens. É a visão de Friedman e Hayek, e eles insistem em que esse seja o tipo certo de liberdade. Muitas gerações de defensores do capitalismo concordaram.

    Mas qualquer revisão realista da economia de mercado mostra quadro muito diferente: o capitalismo limita os dois tipos de liberdade, a liberdade positiva e também a liberdade negativa. O capitalismo favorece uma acumulação monstro de poder privado, ao concentrar a riqueza individual e ao blindar completamente o controle que as empresas exercem sobre os mercados (além de destruir sem piedade os sistemas ambientais e, assim, qualquer possibilidade de liberdade para futuras gerações). O capitalismo não fracassa apenas ao não garantir "liberdade positiva" de acesso a fatia justa da economia; fracassa também ao não proteger a "liberdade negativa" contra os jogos de poder da propriedade corporativa do 1%.

    Quando GM e Ford decidiram desertar de cidades como Detroit e Flint, mudando-se para cidades e países mais pobres, negaram à sua antiga força de trabalho qualquer liberdade positiva para gozar dos enormes ganhos da indústria — ganhos que os próprios trabalhadores geraram. 

    Quando a indústria farmacêutica de Martin Shkreli aumentou o preço de uma droga patenteada necessária à manutenção da vida, de $13,50 para $750, efetivamente impedindo que pessoas acometidas daquela específica doença tivessem acesso à medicação, empurrou esses doentes para a miséria ou para a bancarrota –, o que configura assustadora restrição da liberdade negativa. 

    Quando a empresa Amazon organizou um concurso para decidir que cidade dos EUA seria abençoada com a construção de sua nova sede, e prefeitos em todo o continente abriram mão de bilhões criando novas isenções de impostos e jogando fortunas aos pés da empresa, a empresa Amazon acumulou para si poder monstro sobre o destino de milhões de pessoas – o que expôs, perfeitamente a nu, o quanto as decisões capitalistas de investimentos podem limitar dramaticamente a liberdade humana.

    Defensores do capitalismo insistem que, como Friedman e a esposa Rose escreveram em seu livro Livre para Escolher, “Quando você entra numa loja, ninguém o força a comprar. Você é livre para comprar ou sair da loja... Você é Livre para escolher.” Aplicaram o mesmo argumento aos trabalhadores: se você não gosta do seu trabalho ou carreira, ache outro.

    Mas outras figuras viram de modo muito diferente a alegada liberdade negativa do mercado. Considere Frederick Douglass, o escravo fugido e intelectual autodidata. Douglass concluiu:

    A experiência demonstra que pode haver uma escravidão de salários só um pouco menos cruel e devastadora em seus efeitos que escravidão de corpos, que escraviza pais e filhos e netos, e essa escravidão de salários é metida goela abaixo com a primeira (...). O homem que tenha o poder de dizer a outro homem "Você tem de trabalhar a terra para mim, em troca do salário que eu decidi pagar", tem um poder de escravizador sobre o outro igualmente real, se não tão completo, como o agente com poder para obrigar a trabalhar sob chicote. Tudo que um homem tenha, ele entregará para salvar a vida.

    Aí Douglass sugeria que os mercados permitem o exercício do poder menos fiscalizável e menos fiscalizado – o poder inimigo da liberdade de usufruir de direitos. Mas como uma pessoa livre poderia ser "escravizada" aos salários, havendo tantas diferentes opções para comprar diferentes bens e encontrar diferentes carreiras?

    Uma das respostas, como críticos do capitalismo têm dito ao longo de séculos, é que mercados concentram-se e muito frequentemente tendem ao monopólio. Desde os bem conhecidos monopólios da Idade do Ouro no petróleo e no aço, até as gigantes do Vale do Silício hoje, a dinâmica do capitalismo gera inacreditáveis concentrações de poder privado.[2] E se há leis antitrustes que visam a limitar esses monopólios, verdade é que, como disse o eminente economista Alfred Chandler, há muito tempo, comentando a Lei Sherman de 1890, no melhor dos casos essas leis tendem a "criar oligopólio onde antes houve monopólio e a dificultar que o oligopólio torne-se outra vez monopólio.” Grande concentração de poder não fiscalizável e não fiscalizado: desse estofo se faz o capitalismo maduro, não de mercados bondosos das fantasias dos Friedmans.

    O ponto mais forte de Douglass, contudo, foi ver e declarar que as economias de mercado tratam as necessidades básicas como mercadorias a serem compradas e vendidas, inclusive comida e teto. O capitalismo empurra as pessoas a encontrar trabalho nos mercados de trabalho em termos tais, que a única coisa que podem fazer é deixar-se esmagar pelo poder tirânico de abusadores capitalistas autoinflados, dos Rockefellers aos Bezos.

    Esses abusadores infringem radicalmente a liberdade negativa e a liberdade positiva. Para conseguir o rudimentos da sobrevivência, muita gente tem de se submeter à violenta ditadura das modernas das fábricas contemporâneas — aos horários sempre variados, à revista na sala onde as pessoas trocam de roupa, às restrições à liberdade de manifestar o próprio pensamento. Não surpreende que Douglass tenha acrescentado: “À medida em que o trabalhador tornar-se mais inteligente, desenvolverá o que o capital já tem – vale dizer: o poder de organizar-se e combinar-se para autoproteção.” A organização coletiva de trabalhadores – bicho-papão temido dos capitalistas violentos como Friedman — sempre foi a única garantia de liberdade para exercer direitos.

    Mas... calma! Friedman & Co. dizem que têm um ás na manga: "Dado que a família sempre tem a alternativa de produzir diretamente para o auto-sustento" – escreveu em Capitalismo e Liberdade, “ninguém é obrigado a participar de nenhum tipo de troca, a menos que se beneficie da troca". O poder de “sair” controla(ria) o poder potencialmente coercitivo do mercado de trabalho.

    Problema é que a 'família média' de Friedman é quadro tão róseo, que beira o delírio. E Friedman recusa-se a reconhecer que produzir bens inevitavelmente demanda capital, ferramentas e equipamentos.

    E o capital é monstruosamente concentrado. Thomas Piketty, estudioso da desigualdade, descobriu que os 10% mais ricos dentre os lares nos EUA são donos de 70% de toda a riqueza nacional; 35% dessa riqueza está concentrada no 1% do topo da pirâmide. Importante não deixar passar sem ver é que empresas por ações, que respondem pela propriedade do capital produtivo necessário para que o povo consiga "produzir sozinho, para si mesmo" são igualmente super concentradamente poucas: as 5% famílias mais ricas concentram 67% de todas as ações que há nos EUA, segundo o Economic Policy Institute.

    Sabe-se lá como, esse ganhador do Prêmio Nobel, professor da Chicago School, consegue não ver que o indivíduo médio – o indivíduo em torno do qual toda a filosofia dos Friedman supostamente se ergueria — é prisioneiro e refém dos desígnios dos donos da economia produtiva, que podem decidir o quanto desgraçada será nossa vida, e que cidades serão autorizadas a ter futuro econômico. Do tempo de descanso à ergonomia, à licença-maternidade e aos assuntos admitidos no local de trabalho, a camada superior manda e desmanda e zomba descaradamente da "liberdade capitalista".

    A esquerda liberal [ing. "liberals], por sua vez, está sempre a postos para 'exigir' mais "liberdade positiva" sob a forma de direitos à assistência pública à saúde, à educação e a viver em ambiente saudável. Mas muito mais ganharia se exigisse controle democrático sobre investimentos e produção, modelo muito mais interessante e promissor de liberdade, porque o controle alcançado pelo empregado substituiria o motor 'lucro' do capitalismo, por solidariedade – essa, sim, impulso para cada um apoiar seu próximo e colaborar com ele, homens e mulheres.

    Se o fizesse, estaria pondo fim ao poder das empresas gigantes para aleijar cidades inteiras, simplesmente por se mudar para outro país, ou para desgraçar a vida dos seus empregados, aumentando as cotas de produção ou super vigiando cada movimento dos empregados. Decisões tomadas por cooperativas de empregados, eleitos e sujeitos a serem trocados pelos colegas, poderiam ser uma matriz de solidariedade social, o que limitaria significativamente o poder destrutivo a que todos estamos acostumados, no mundo empresarial de hoje.

    Nós, da esquerda-esquerda não podemos entregar à direita o discurso da liberdade para exercer direitos. Ter análise crítica da empresa capitalista é excelente, mas os socialistas temos também de promover o potencial transformador da liberdade socialista — seja para inspirar para o duro trabalho necessário para mudar o mundo, seja para dar um norte às nossas lutas.

    Em  Caminho para a Servidão, Hayek resmunga, lamentando que "a promessa de maior liberdade tornou-se uma das armas mais efetivas da propaganda socialista". Só nós não sabemos?!*******


    * Rob Larson é professor de Economia no Tacoma Community College e autor de Capitalism vs. Freedom: The Toll Road to Serfdom [Capitalismo x Liberdade: pedágio na estrada para a servidão].
    [1] Hayek é leitura que Steve Bannon anda pela Europa a recomendar a Martine Le Pen e a Salvini. Ver "A fala de Steve Bannon que uns amam, outros odeiam e ninguém ouviu. Discurso de Steve Bannon ao Congresso da Refundação do Front National, de Marine LePen", 19/3/2018, vídeo, 35”54’, traduzido no blog O empastelador [NTs].
    [2] Sobre um dos casos mais inacreditáveis de concentração de poder privado em toda a história do mundo, vide o que diz a professora Maria Lúcia Fattoreli  no Duplo Expresso de Domingo, 17/3/2019 (assistam todo o programa), sobre o poder dos bancos no Brasil do golpe, com destaque para a ação do Banco Central de Meirelles e Ilan Goldfayn, como 'esteio' do poder dos bancos privados tanto em tempos de 'democracia' como hoje, sob golpe [NTs]. 

    sexta-feira, 22 de março de 2019

    A liberdade capitalista é só encenação, por Rob Larson

    13/3/2019, Rob Larson,* Jacobin Magazine

    Milton Friedman errou. O capitalismo não promove a liberdade. Só promove locais de trabalho que são autocracias e bilionários tirânicos [além de goiabeiras, Damares, pistoleiros e tarados elegíveis em geral (NTs)].
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    Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga



    Consideradas todas as mudanças dos últimos 50 anos, é surpreendente que os clássicos conservadores tenham mantido tão alto prestígio. Capitalismo e Liberdade, de Milton Friedman e A estrada da Servidão de Friedrich Hayek ainda são oferecidos na livraria online de Breitbart. Rush Limbaugh diz aos seus ouvintes que “Milton Friedman deve ser a Bíblia para os jovens e para todos que tentem entender o capitalismo e os livres mercados.” Charlie Kirk, fundador de Turning Point USA, celebra Hayek e Friedman em seu livro, e Ben Shapiro cultiva Friedman como ícone conservador na National Review.[1] 

    Mas o que, então, são a liberdade e garantia de direitos [orig. liberty and freedom] que os conservadores celebram? E o capitalismo? Promove ou restringe tudo isso?

    "Garantir direitos" é tido em alta conta, porque, de algum modo, cobre todos os prazeres da vida – é a capacidade para fazer o que se queira, dentro dos limites das condições materiais e no tempo que nos é dado viver. Mas o modo como você gosta de passar seu tempo, quem você ama ou com quem você trabalha, ou com quem você ri, tudo isso representa também o tremendo valor do gozo de direitos sociais.

    Para John Stuart Mill, o princípio básico do gozo de direitos era que "o único objetivo para o qual o poder pode exercer-se corretamente sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade dele, é impedir o dano a outros.” O filósofo Isaiah Berlin, adiante, descreveu essa ideia como "liberdade negativa" ou ser livre de coerção. Berlin também sugeriu uma "liberdade positiva" – liberdade para fazer coisas diferentes, não apenas "ser livre das escolhas de outros". Em vez de perguntar "Que centros de poder me controlam,” a liberdade positiva pergunta "O que sou livre para fazer com as oportunidades e recursos do mundo?”

    A visão filosófica tradicional do capitalismo é que embora não ofereça "liberdade positiva" de acesso a uma porção justa da produção mundial de bens, o capitalismo oferece "liberdade negativa" da tirania econômica, deixando consumidores e trabalhadores livres para escolher entre vários itens. É a visão de Friedman e Hayek, e eles insistem em que esse seja o tipo certo de liberdade. Muitas gerações de defensores do capitalismo concordaram.

    Mas qualquer revisão realista da economia de mercado mostra quadro muito diferente: o capitalismo limita os dois tipos de liberdade, a liberdade positiva e também a liberdade negativa. O capitalismo favorece uma acumulação monstro de poder privado, ao concentrar a riqueza individual e ao blindar completamente o controle que as empresas exercem sobre os mercados (além de destruir sem piedade os sistemas ambientais e, assim, qualquer possibilidade de liberdade para futuras gerações). O capitalismo não fracassa apenas ao não garantir "liberdade positiva" de acesso a fatia justa da economia; fracassa também ao não proteger a "liberdade negativa" contra os jogos de poder da propriedade corporativa do 1%.

    Quando GM e Ford decidiram desertar de cidades como Detroit e Flint, mudando-se para cidades e países mais pobres, negaram à sua antiga força de trabalho qualquer liberdade positiva para gozar dos enormes ganhos da indústria — ganhos que os próprios trabalhadores geraram. 

    Quando a indústria farmacêutica de Martin Shkreli aumentou o preço de uma droga patenteada necessária à manutenção da vida, de $13,50 para $750, efetivamente impedindo que pessoas acometidas daquela específica doença tivessem acesso à medicação, empurrou esses doentes para a miséria ou para a bancarrota –, o que configura assustadora restrição da liberdade negativa. 

    Quando a empresa Amazon organizou um concurso para decidir que cidade dos EUA seria abençoada com a construção de sua nova sede, e prefeitos em todo o continente abriram mão de bilhões criando novas isenções de impostos e jogando fortunas aos pés da empresa, a empresa Amazon acumulou para si poder monstro sobre o destino de milhões de pessoas – o que expôs, perfeitamente a nu, o quanto as decisões capitalistas de investimentos podem limitar dramaticamente a liberdade humana.

    Defensores do capitalismo insistem que, como Friedman e a esposa Rose escreveram em seu livro Livre para Escolher, “Quando você entra numa loja, ninguém o força a comprar. Você é livre para comprar ou sair da loja... Você é Livre para escolher.” Aplicaram o mesmo argumento aos trabalhadores: se você não gosta do seu trabalho ou carreira, ache outro.

    Mas outras figuras viram de modo muito diferente a alegada liberdade negativa do mercado. Considere Frederick Douglass, o escravo fugido e intelectual autodidata. Douglass concluiu:

    A experiência demonstra que pode haver uma escravidão de salários só um pouco menos cruel e devastadora em seus efeitos que escravidão de corpos, que escraviza pais e filhos e netos, e essa escravidão de salários é metida goela abaixo com a primeira (...). O homem que tenha o poder de dizer a outro homem "Você tem de trabalhar a terra para mim, em troca do salário que eu decidi pagar", tem um poder de escravizador sobre o outro igualmente real, se não tão completo, como o agente com poder para obrigar a trabalhar sob chicote. Tudo que um homem tenha, ele entregará para salvar a vida.

    Aí Douglass sugeria que os mercados permitem o exercício do poder menos fiscalizável e menos fiscalizado – o poder inimigo da liberdade de usufruir de direitos. Mas como uma pessoa livre poderia ser "escravizada" aos salários, havendo tantas diferentes opções para comprar diferentes bens e encontrar diferentes carreiras?

    Uma das respostas, como críticos do capitalismo têm dito ao longo de séculos, é que mercados concentram-se e muito frequentemente tendem ao monopólio. Desde os bem conhecidos monopólios da Idade do Ouro no petróleo e no aço, até as gigantes do Vale do Silício hoje, a dinâmica do capitalismo gera inacreditáveis concentrações de poder privado.[2] E se há leis antitrustes que visam a limitar esses monopólios, verdade é que, como disse o eminente economista Alfred Chandler, há muito tempo, comentando a Lei Sherman de 1890, no melhor dos casos essas leis tendem a "criar oligopólio onde antes houve monopólio e a dificultar que o oligopólio torne-se outra vez monopólio.” Grande concentração de poder não fiscalizável e não fiscalizado: desse estofo se faz o capitalismo maduro, não de mercados bondosos das fantasias dos Friedmans.

    O ponto mais forte de Douglass, contudo, foi ver e declarar que as economias de mercado tratam as necessidades básicas como mercadorias a serem compradas e vendidas, inclusive comida e teto. O capitalismo empurra as pessoas a encontrar trabalho nos mercados de trabalho em termos tais, que a única coisa que podem fazer é deixar-se esmagar pelo poder tirânico de abusadores capitalistas autoinflados, dos Rockefellers aos Bezos.

    Esses abusadores infringem radicalmente a liberdade negativa e a liberdade positiva. Para conseguir o rudimentos da sobrevivência, muita gente tem de se submeter à violenta ditadura das modernas das fábricas contemporâneas — aos horários sempre variados, à revista na sala onde as pessoas trocam de roupa, às restrições à liberdade de manifestar o próprio pensamento. Não surpreende que Douglass tenha acrescentado: “À medida em que o trabalhador tornar-se mais inteligente, desenvolverá o que o capital já tem – vale dizer: o poder de organizar-se e combinar-se para autoproteção.” A organização coletiva de trabalhadores – bicho-papão temido dos capitalistas violentos como Friedman — sempre foi a única garantia de liberdade para exercer direitos.

    Mas... calma! Friedman & Co. dizem que têm um ás na manga: "Dado que a família sempre tem a alternativa de produzir diretamente para o auto-sustento" – escreveu em Capitalismo e Liberdade, “ninguém é obrigado a participar de nenhum tipo de troca, a menos que se beneficie da troca". O poder de “sair” controla(ria) o poder potencialmente coercitivo do mercado de trabalho.

    Problema é que a 'família média' de Friedman é quadro tão róseo, que beira o delírio. E Friedman recusa-se a reconhecer que produzir bens inevitavelmente demanda capital, ferramentas e equipamentos.

    E o capital é monstruosamente concentrado. Thomas Piketty, estudioso da desigualdade, descobriu que os 10% mais ricos dentre os lares nos EUA são donos de 70% de toda a riqueza nacional; 35% dessa riqueza está concentrada no 1% do topo da pirâmide. Importante não deixar passar sem ver é que empresas por ações, que respondem pela propriedade do capital produtivo necessário para que o povo consiga "produzir sozinho, para si mesmo" são igualmente super concentradamente poucas: as 5% famílias mais ricas concentram 67% de todas as ações que há nos EUA, segundo o Economic Policy Institute.

    Sabe-se lá como, esse ganhador do Prêmio Nobel, professor da Chicago School, consegue não ver que o indivíduo médio – o indivíduo em torno do qual toda a filosofia dos Friedman supostamente se ergueria — é prisioneiro e refém dos desígnios dos donos da economia produtiva, que podem decidir o quanto desgraçada será nossa vida, e que cidades serão autorizadas a ter futuro econômico. Do tempo de descanso à ergonomia, à licença-maternidade e aos assuntos admitidos no local de trabalho, a camada superior manda e desmanda e zomba descaradamente da "liberdade capitalista".

    A esquerda liberal [ing. "liberals], por sua vez, está sempre a postos para 'exigir' mais "liberdade positiva" sob a forma de direitos à assistência pública à saúde, à educação e a viver em ambiente saudável. Mas muito mais ganharia se exigisse controle democrático sobre investimentos e produção, modelo muito mais interessante e promissor de liberdade, porque o controle alcançado pelo empregado substituiria o motor 'lucro' do capitalismo, por solidariedade – essa, sim, impulso para cada um apoiar seu próximo e colaborar com ele, homens e mulheres.

    Se o fizesse, estaria pondo fim ao poder das empresas gigantes para aleijar cidades inteiras, simplesmente por se mudar para outro país, ou para desgraçar a vida dos seus empregados, aumentando as cotas de produção ou super vigiando cada movimento dos empregados. Decisões tomadas por cooperativas de empregados, eleitos e sujeitos a serem trocados pelos colegas, poderiam ser uma matriz de solidariedade social, o que limitaria significativamente o poder destrutivo a que todos estamos acostumados, no mundo empresarial de hoje.

    Nós, da esquerda-esquerda não podemos entregar à direita o discurso da liberdade para exercer direitos. Ter análise crítica da empresa capitalista é excelente, mas os socialistas temos também de promover o potencial transformador da liberdade socialista — seja para inspirar para o duro trabalho necessário para mudar o mundo, seja para dar um norte às nossas lutas.

    Em  Caminho para a Servidão, Hayek resmunga, lamentando que "a promessa de maior liberdade tornou-se uma das armas mais efetivas da propaganda socialista". Só nós não sabemos?!*******


    * Rob Larson é professor de Economia no Tacoma Community College e autor de Capitalism vs. Freedom: The Toll Road to Serfdom [Capitalismo x Liberdade: pedágio na estrada para a servidão].
    [1] Hayek é leitura que Steve Bannon anda pela Europa a recomendar a Martine Le Pen e a Salvini. Ver "A fala de Steve Bannon que uns amam, outros odeiam e ninguém ouviu. Discurso de Steve Bannon ao Congresso da Refundação do Front National, de Marine LePen", 19/3/2018, vídeo, 35”54’, traduzido no blog O empastelador [NTs].
    [2] Sobre um dos casos mais inacreditáveis de concentração de poder privado em toda a história do mundo, vide o que diz a professora Maria Lúcia Fattoreli  no Duplo Expresso de Domingo, 17/3/2019 (assistam todo o programa), sobre o poder dos bancos no Brasil do golpe, com destaque para a ação do Banco Central de Meirelles e Ilan Goldfayn, como 'esteio' do poder dos bancos privados tanto em tempos de 'democracia' como hoje, sob golpe [NTs].