Europa se distancia da crença em Deus, afirma estudioso
da revista francesa La Vie
Portier: para ateus, o indivíduo
constrói sua própria existência“Deus
provavelmente não existe. Então pare de se preocupar e aproveite a
vida”. Em 2008, a campanha publicitária da Associação Humanista Ateia na
Inglaterra teve grande impacto em toda a Europa.
O número de não
crentes aumenta, assim como aqueles que duvidam da existência de Deus.
Quantos são os ateus? Eles também podem ter valores absolutos e uma
espiritualidade? O francês Philippe Portier (foto),
diretor de estudos na Escola Prática de Altos Estudos e diretor do Grupo
Sociedades, Religiões, Laicidades, falou sobre esses e outros assuntos
sobre o ateísmo na entrevista que segue.
Podemos afirmar que o número de ateus está aumentando?
Sim.
De modo geral, o número dos sem religião aumenta, tanto na França como
em outros lugares da Europa. É uma certeza. Por sem religião entendo
pessoas que se declaram sem afiliação. No interior desse grupo, a parte
daqueles que se dizem sem Deus também está aumentando. No total,
assistimos, portanto, a um distanciamento com a crença em Deus.
Quanto são eles?
Os
números variam em função de questões específicas. Na França, 28% a 30%
da população se diz sem Deus. Entre os jovens, entre 18 e 30 anos, a
fração sobe para 35%.
E o número de agnósticos também está aumentando?
Sim,
mas melhor que falar de agnosticismo, um termo que remete à filosofia
do Iluminismo e a uma postura de dúvida do religioso, prefiro os termos
possibilismo ou probabilismo. Para essas pessoas, probabilistas, Deus
talvez exista. E esta zona cinzenta se desenvolve. É, talvez, a
população mais importante. Eles são em torno de 35-40% da população.
E os crentes?
Haverá
25% a 30% que estão certos de que Deus existe. Mas para esses crentes,
Deus não é sempre o mesmo. Não obedece necessariamente às regras da
religião instituída.
Os ateus sempre têm o mesmo tipo de descrença?
Não.
Entre aqueles que dizem “eu não creio em Deus” e aqueles que dizem não
ter nenhuma crença espiritual, há uma brecha considerável. Ora, entre os
europeus há muitas vezes um espiritualismo difuso, que não se
identifica com o materialismo tradicional que está na origem do ateísmo.
E nas pesquisas qualitativas feitas com ateus,
encontramos muitas vezes a ideia de que o homem estaria dotado de um
espírito. O que remete a uma possível ideia de um espírito que
ultrapassaria os nossos próprios corpos.
Esse ponto, que é muito
importante, permite distinguir dois grupos. Um primeiro, que se encontra
do lado do materialismo e que é fortemente militante, por exemplo, na
Livre Pensamento. Há também um ateísmo mais popular que desconfia das
Igrejas, mas que não quer abraçar todos os pensamentos do ateísmo
militante.
Os ateus também produzem crenças?
A
questão é saber se o fato de se dizer ateu levará necessariamente a uma
visão desprovida de qualquer significação religiosa. Na sociologia das
religiões, há teses que se opõem. Segundo uma dessas teses, defendida
por pesquisadores italianos, os ateus produzem significações religiosas.
Mais precisamente, eles sacralizariam normas de existência que fazem
duvidar da possibilidade de uma crítica. Assim, haveria uma religião
civil e mesmo uma religião política para qualificar alguns valores que
são promovidos pelos ateus fora de qualquer crença em Deus. Também
podemos falar de um “monoteísmo de valores” a propósito das populações
que erigem em valores sagrados o princípio da autonomia do sujeito, o
que permite fundar sua própria existência.
Eles não são, portanto, relativistas o tempo todo?
Nota-se
que entre os ateus alguns valores não são negociáveis. O que significa
que não nos encontramos mais no relativismo absoluto. A título de
exemplo, os direitos da consciência são absolutizados. Assim como os
direitos da criança e da mulher. Esses valores não remetem a elementos
sobrenaturais. Mas elas aparecem como valores sagrados não negociáveis
para pessoas que recusam a crença em Deus.
É possível falar de uma religião laica?
A
noção de “religião laica” remete a uma concepção muito particular da
existência política. Nem todos os ateus a compartilham necessariamente.
Mas tipicamente, os militantes de organizações como a União dos Ateus, a
União Racionalista ou a Federação Nacional do Livre Pensamento defendem
um modelo de religião laica. Trata-se de um Estado que fixa normas de
existência com uma escola que é exclusivamente laica. Esta religião pode
desenvolver uma moral laica, difundida pela escola. Ela engloba,
portanto, a sociedade em seu conjunto. Nesse sistema de religião laica
não se procura necessariamente suprimir autoritariamente o fenômeno
religioso. Ao contrário, quer-se privatizá-la de maneira rigorosa: a
religião é expulsa para a esfera privada.
Mas nem todos os ateus compartilham esta visão restritiva da religião?
Muitos
ateus comuns não somente não compartilham esta visão, como a ignoram!
Eles simplesmente se afastam das instituições religiosas que lhes
parecem representar um Deus autoritário. Ou seja, esses ateus também
podem desenvolver valores sagrados fundados na autonomia do sujeito: os
direitos da criança, a possibilidade de as mulheres escolherem sua
própria existência, etc., sem que haja nisso necessariamente uma
referência a um modelo de tipo laico. Pois alguns ateus são favoráveis a
uma ética republicana pura. Os outros aderem antes a uma ética liberal
extrema, em oposição à republicana.
Para os ateus, o indivíduo constrói sua própria existência, de maneira autônoma?
Sim
e é por esta razão que eles são favoráveis às reformas sociais. Eles
defenderam a contracepção e o aborto nos anos 1960 e 1970, depois a
procriação assistida nos anos 1980. Hoje, eles são favoráveis à
eutanásia e ao casamento gay. A questão de fundo é que defendem o fato
de que o indivíduo deve poder construir sua própria existência de
maneira autônoma.
Entre os crentes, o princípio da organização da
vida não é o mesmo. Eles encontram uma referência em normas superiores.
Eles cultivam a ideia de uma transcendência e de uma moralidade que
foge à liberdade do sujeito. O que acaba por fundar uma visão que
desconfia da evolução não controlada.
Os católicos têm a fama de serem majoritariamente de direita. Os ateus são mais de esquerda?
Quanto
mais longe se estiver do polo religioso, mais se é ateu, mais se vota
na esquerda. Quanto mais afastado da crença em Deus, mais se é favorável
à evolução das legislações sociais. Outra correlação: quanto mais jovem
for, mais se é aberto a reformas sociais. Ao contrário, quanto mais
perto se estiver do polo religioso, portanto crente e membro de uma
religião institucionalizada, mais se vota na direita.
Mas,
atenção! Eu insisto novamente no desenvolvimento de zonas cinzentas,
marcadas pela incerteza, que está em sintonia com a ultramodernidade.
Nossa sociedade não é mais tão dividida que em outros tempos entre ateus
militantes e católicos da certeza.
No entanto, há uma clivagem
muito clara entre crentes e ateus em relação a temas sociais. Sim,
sempre há uma militância ateia em oposição a uma militância religiosa. E
nesse momento, dois campos dão o tom nos debates públicos. Eu vou usar o
termo “guerra de culturas”. Mais precisamente, de um lado nós temos a
cultura da autonomia do sujeito. Do outro, uma cultura da normatividade.
E entre essas duas culturas, há diferenças muito importantes sobre a
maneira de conduzir uma sociedade.
Qual polo predomina?
Predomina
mais o polo ateu. A tendência dominante é a do relativismo e do
afastamento das populações das normas religiosas. Isso não é
necessariamente uma hostilidade para com as Igrejas, mas considera-se
cada vez mais que os indivíduos podem levar sua existência como bem lhes
aprouver. Esta secularização dos comportamentos e a autonomização das
consciências é hoje mais importante que o outro polo, que, entretanto,
resiste bem. Tem-se também a impressão de que o governo está se
afastando cada vez mais do polo religioso. Eu diria que o atual governo
pende para o lado do polo da não crença e para o lado do princípio da
autonomia, que é dominante.
Mas esse fato remete a processos de
socialização diferentes. O primeiro, bem entendido, que os socialistas
romperam, há muito tempo, qualquer relação com o polo religioso. E as
classes médias bem formadas e bem representadas dos socialistas
continuam a afastar esse governo do polo religioso e, portanto, de uma
visão moral da lei.
O que muda com esse governo é que ele vai
mais longe que em outros tempos na afirmação do princípio da autonomia.
Eu recordo que as principais reformas sociais, até agora, foram votadas
pela direita: a contracepção em 1967, o aborto em 1975, a bioética em
1994, a eutanásia em 2005. Agora o governo socialista propõe uma espécie
de ruptura – a ponto de falar de “mudança de civilização” – em relação a
questões como a filiação e a morte. É preciso levar em conta essas
mudanças.
E as Igrejas? Elas reagem mais fortemente que antes?
Sim,
é o outro elemento desta evolução. A Igreja católica intervém de
maneira mais militante que no passado. Por quê? O corpo episcopal e os
sacerdotes mudaram. Eles se tornaram mais identitários e estão mais
apegados aos seus princípios morais. Eles sentem também que a sociedade,
especialmente entre os probabilistas, não está segura da necessidade de
desordenar a tal ponto as regras tradicionais da sociedade.
Com tradução do Cepat para IHU Online.
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