Mohammed Khaddour, 55, é embaixador da Síria, no Brasil, há menos de dois meses. Em entrevista, afirma que seu governo considera o país um amigo. Ele revela também que por ser brasileiro, Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da comissão criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para avaliar a situação no país, teve a entrada no Síria autorizada, mas não aceitou. A comissão tentava entrar lá há dois meses.
Folha de S. Paulo: A ONU diz que 5.000 já morreram pela repressão. Como o governo justifica esse número?
Mohammed Khaddour: Não reconhecemos esse número. Nós temos uma lista com nomes de 1.500 cidadãos e agentes das forças de segurança que foram assassinados por terroristas armados, entre eles, alguns membros da Al Qaeda. Alguns (dos terroristas) receberam financiamento e armas do exterior para matar as pessoas e criar um estado de turbulência no país. Quando o Conselho (de Direitos Humanos) das Nações Unidas disse que o número de vítimas seria de 5 mil, pedimos que ele enviasse uma relação com os nomes de todas as vítimas. Até agora não tivemos resposta. Mas, pelo jeito, esse número é só um "disse que me disse". A comissão que definiu essa quantidade não entrou na Síria e não analisou os números com as fontes oficiais. Conseguiu essas informações com pessoas que estão fora do país e querem afetar a Síria de alguma forma.
FSP: Mas a comissão criada pela ONU não teve a entrada permitida no país pelo governo.
MK: Em primeiro lugar, temos muita consideração e respeito pelo trabalho das Nações Unidas, temos um embaixador na ONU. E vemos o trabalho da ONU com base no princípio de respeito à soberania dos países. Mas, por meio da nossa experiência na região na guerra contra o Iraque, no Líbano e na Líbia, sabemos que algumas comissões que trabalham na ONU são parciais e seguem tendências e políticas que não são bem intencionadas para a região. Houve uma preocupação do governo sírio de que tais comissões contribuíssem para aumentar a crise no país ao invés de contribuir e ajudar na sua solução.
Mas a Síria permitiu que o presidente da missão de Direitos Humanos (Paulo Sérgio Pinheiro), por ser brasileiro, de um país amigo, entrasse e debatesse com o lado sírio as informações que recebeu de fora do país. A comissão não aceitou que ele viesse sozinho porque essa não era a intenção deles.
FSP: A autorização foi dada a ele como chefe da comissão? Ele poderia trabalhar no relatório na Síria?
MK: A Síria permitiu ao presidente da comissão que entrasse. Com certeza ele não entraria para fazer turismo e o governo sabia muito bem que ele era presidente da comissão. Acredito que ele teria toda a liberdade de discutir o que quisesse e todas as facilidades seriam dadas a ele.
FSP: O trabalho da comissão continuará. Desta vez ela poderá entrar completa na Síria?
MK: Temos um embaixador na ONU e, por meio dele, será feito o contato e haverá uma decisão se a comissão poderá ir ou não à Síria. Mas o relatório que eles já apresentaram não tem crédito nenhum, foi injusto e baseado em informações que não tiveram nenhuma precisão, o que não incentiva nem o governo nem o povo sírio a tratar com essa comissão.
FSP: O governo teve a chance de dar a sua versão ao relatório. Por que não o fez?
MK:Até agora, a nossa comissão interna (de Direitos Humanos) não conseguiu fechar seu relatório. Quando estiver pronto, ele será enviado à missão.
FSP: Como o governo vê a posição do Brasil em relação à Síria?
MK: O Brasil é um país amigo e tem suas relações e seus interesses internacionais o que levamos em consideração. Mas como os países da América do Sul, está do lado do direito e da justiça na região.
FSP: Apesar de o governo brasileiro condenar a violação de direitos humanos no país?
MK: Todos nós condenamos a violação dos direitos humanos e a Síria é conhecida historicamente por atuar ativamente em todos os fóruns internacionais para preservar o direito do ser humano em todas as áreas. Os direitos reservados ao cidadão sírio, tanto homem quanto mulher, não existem em nenhum outro país da região. Se tivermos como exemplo a situação da mulher, temos uma vice-presidente da República, a presidente do Supremo Tribunal Federal é mulher, temos 13% de mulheres no Parlamento, percentagem que não existe, muitas vezes, em países europeus. Temos serviços de saúde e instituições que cuidam de crianças e idosos. Tudo isso se refere aos direitos humanos.
FSP: O relatório aponta crimes contra a humanidade cometidos pelas forças de segurança com o consentimento do governo. Como respondem a essas denúncias?
MK: O acusado é inocente até que se apresentem provas contra ele. Se essas informações estão realmente documentadas, então que sejam apresentadas ao governo da Síria. Não existe nada documentado sobre estes crimes. A única coisa que sabemos é que esse relatório foi baseado em depoimentos de pessoas que estão fazendo exatamente o trabalho de acusar o governo da Síria. Nós temos documentado quem foi assassinado em que dia, local e por qual grupo. Quero que eles nos mostrem que informações têm de fato.
FSP: À comissão da ONU, desertores disseram ter recebido ordens para abrir fogo contra manifestantes. O governo deu essa ordem?
MK: Desde o início dos acontecimentos, o presidente Bashar Assad disse que não deu ordens a ninguém para atirar contra manifestantes. Muitos dos membros das forças de segurança foram assassinados por integrantes de grupos armados que se infiltraram entre manifestantes. E como aumentaram as ações desses grupos armados e o número de mortes e sequestros, então o país tem como obrigação proteger seus cidadãos. O governo procurou prender essas pessoas armadas, que reagiam atirando. Isso obrigou o Exército a se defender e atacar os grupos armados.
A maioria desses `desertores' (ouvidos pela comissão) era membro de grupos armados. Eles se infiltraram entre os manifestantes, atiraram nas forças de segurança do Exército, mataram, roubaram seus trajes e armas e se apresentaram como membros desertores. Não são do Exército. O Exército e o povo estão unidos em prol da Síria. Mas se um ou dois ratos do Exército aproveitaram a situação para desertar, isso é normal.
FSP: O governo sírio faz alguma diferenciação entre o que são manifestações pacíficas e o que são ações articuladas por grupos armados?
MK: O direito à manifestação popular foi reconhecido desde o início. E essas manifestações reivindicavam por reformas, que o presidente já pretendia adotar desde que assumiu, em 2000. Mas as pessoas que não querem o bem da Síria aproveitaram essas reivindicações e apoiaram os grupos armados, com armas e dinheiro, para alcançarem seus objetivos de afetar a estabilidade e a segurança na Síria.
FSP: Um colaborador da Folha foi preso sem qualquer acusação formal. Como explica as prisões arbitrárias no país?
MK: Não existem prisões arbitrárias na Síria. Existe uma lei na Síria que regulamenta as manifestações e os infratores devem responder diante do Estado. Isto é o praticado em todo os países do mundo, e os detidos são interrogados e liberados caso não tenham cometido qualquer crime previsto por lei.
No caso do brasileiro, ele entrou como estudante e trabalhava com imprensa sem informar qualquer uma das autoridades de informação do país. Quando soube da sua prisão, liguei para o Ministério das Relações Exteriores e pedi que libertasse esse jornalista, caso estivesse preso. Depois de 15 minutos, ele já estava livre. Perguntei porque ele foi detido, e a resposta é que entrou na Síria de uma forma ilegal.
Para nós, é importante saber quem é esse estrangeiro, por que está no país e quem está responsável por ele. O país tem que zelar tanto pelos sírios quanto pelos cidadãos de fora do país. E ele foi somente detido por quatro dias e depois liberado. E essa detenção foi absolutamente legal, porque ele contrariou um documento que ele já tinha assinado.
FSP: Como jornalista, o senhor avalia que a imprensa na Síria é livre?
MK: Há na Síria representantes de quase todos os meios de comunicação: europeus, americanos e árabes. A imprensa oficial é igual à imprensa oficial de qualquer lugar no mundo. A imprensa privada é livre para dizer o que pensa, e os correspondentes internacionais também têm liberdade para escrever de forma bastante livre.
FSP: Então por que a resistência à entrada de jornalistas no país?
MK: Nós recebemos a visita de um jornalista brasileiro de seu jornal, mas o problema é que a maioria dos meios de imprensa já tinha ideias prontas sobre o que ocorria na Síria e faziam parte do "esquema" desenhado para o país. Os escritórios desses meios na Síria tiveram a oportunidade de filmar tudo o que ocorre na Síria, tanto o lado oficial quanto o dos manifestantes. Mas, infelizmente, não transmitiram uma única imagem da matança que esses grupos armados promoveram contra o povo sírio e as forças de segurança. Daí começaram os problemas dos jornalistas com a Síria e da Síria com os jornalistas: a subjetividade, as notícias tendenciosas.
FSP: Quem teria interesse em desestabilizar a Síria?
MK: Existem um esquema ocidental que quer que a Síria faça parte de um projeto ocidental para a região. Tudo o que acontece é em função desse projeto. O que a Síria defende é que tem a sua soberania e autodeterminação e não vai abrir mão desses princípios. Por isso que o "exterior" fica contra ela.
FSP: Qual a real disposição do regime em trabalhar com a Liga Árabe, uma vez que ignorou os ultimatos para o envio de uma missão ao país?
MK: Nós que pedimos para a Liga Árabe entrar na Síria para analisarmos juntos a situação e assinar um protocolo de cooperação, mas eles não foram. O problema é deles, não nosso. A Síria aprovou (o acordo), desde que ocorresse dentro da Síria. Um protocolo deve ser assinado pelas duas partes, mas eles apresentaram um texto redigido só por eles. Então fomos até Doha e combinamos alguns pontos para o futuro Ðao que demos o nome de `iniciativa árabe'. No mesmo dia, essa iniciativa foi bombardeada pelo exterior: o chanceler da França anunciou que ela morreu no dia em que ela tinha nascido.
FSP: O regime teme que o futuro de Assad seja o mesmo de outros líderes árabes, depostos por sua população?
MK: Não, porque a ampla maioria do povo está com o presidente e com o processo de reformas decretado por ele. O país conseguiu implementar algumas reformas, dentre as quais o cancelamento do estado de emergência que a Síria vivia por causa dos acontecimentos regionais e da ocupação de parte de seu território e uma nova lei de eleições. Nesta semana, ocorreram as primeiras eleições administrativas locais conforme esta nova lei, e foi anunciado um novo decreto sobre a lei de imprensa, uma das melhores da região árabe. Ela permite que a imprensa privada e os jornalistas registrem os acontecimentos e as notícias. Também temos um decreto que prevê uma lei de multipartidarismo e vai ser anunciada a nova Constituição, que definirá o tempo de mandato do presidente da República e para quantos mandatos ele pode ser reeleito.
Fonte: Folha de S. Paulo
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