Entreouvido  na Vila Vudu:
 O  artigo é excelente, dadas as circunstâncias objetivas. Mas o problema dos  pós-tudos (e pré-quase-nadas) é que eles são tão autistas, tão autorreferentes,  que eles acham que eles mesmos terão de reescrever tuuuuudo. Isso ainda é doença  da onipotência (revolucionária) da burguesia: “Todos somos filhos do “fim da  história”, por mais que critiquemos os livros sobre o “fim da história”” – como  já disse, louco-certeiro, o Zizek  [1]. BINGO! 
 Fato  é que: 
 (1)  os pós-tudo jogaram Marx pela janela, junto com a água do banho – e com Stálin,  como bem convinha ao capital então rampante, e que se globalizaria logo depois;  e como todo o ocidente aprendeu a fazer nos anos da Guerra Fria et pour  cause), quando os pós-tudos faziam tabula rasa-faxina  “ético”-autista-
 (2),  como volta fatal do que foi empurrado para baixo do tapete burguês deles... eles  agora já estão chegando bem pertinho de REESCREVER Marx! 
 Já  reescreveram Marx praticamente inteiro (embora sem a precisão generosa e  revolucionária de Marx, infelizmente). Infelizmente também eles ainda entendem  que, um dia, o capitalismo será encerrado (ou eles o declararão morto, talvez,  quando tiverem “democratizado” o Merval Pereira?); e ainda NÃO sabem, sequer, o  que Marx já sabia e escreveu, no século 19, sobre “IDEOLOGIA”. 
 “O  que prova a ação conservadora da ideologia!” [risos,  risos e aplausos alegres, aqui na nossa roda, porque ESSA FOI BOOOA!].  
 O  problema é que, sem ENTENDER o modo como a ideologia opera e sem desmontar a  ideologia,  NINGUÉM completa a “virada da economia política” nem controi nenhuma  hegemonia dos pobres. Mas... se reescreverem Marx melhor que Marx, estaremos no  lucro. E, se  reescreverem pior, teremos de esperar que passem uma ou duas gerações de  pós-tudos ainda liberais burgueses, até que eles também deem côs burros n’água,  e todos consigamos voltar a Marx, depois da catástrofe neoliberal. Afinal, a  catástrofe neoliberal foi muuuito pior que a catástrofe stalinista, mas ainda  não foi avaliada por esse ângulo, porque os pós-tudos não são pós-tuuudo, são  só pós-quase-tudo, e ainda são filhos da Guerra Fria.  
 Mas...  OK, OK. Nós não podemos escolher as lutas. 
 Se  é isso que temos, vamos com eles. E o artigo é, sim, muito claro e muito  útil e expõe  com muita clareza, sim, pelo menos UMA ideia EXCELENTE (ver nota 9), que tem  potência para atacar diretamente o coração da ideologia des-democrática, que  está matando os pobres.
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| Natalie Fenton | 
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| Nick Couldry | 
 23/12/2011, Nick Couldry  e Natalie Fenton, Possible Futures 
 Traduzido  e comentado pelo pessoal da Vila  Vudu
 “A democracia”, escreveu John Dewey [2], “é mais  que uma forma de governo”. [3] A imagem de  democracia que recebemos é quase sempre reduzida a administração, implementação  e gerenciamento do necessário; mas a legitimidade do Estado nas democracias é  inseparável de alguma noção do que seja o desejo geral. 
 A democracia, Rousseau argumentou, exige algum processo  ou mecanismo para que se constitua o “desejo geral”, em relação ao qual o  processo de tomada de decisões possa ser avaliado. [4]  O movimento  Occupy é uma tentativa de  formar o desejo geral, por vias diferentes. Como tal, é contribuição  potencialmente fundamental para resolver a crise contemporânea, pela qual passa  a democracia.
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| Acampamento do Occupy Movement | 
 Essa  nossa opinião, escrita de Londres, é informada por observação da ocupação à  frente da Catedral de St Paul, chamada também “Occupy LSX”, não dos  movimentos Occupy que se espalham pelo mundo. Não que isso  seja alguma espécie de defeito: um dos pontos centrais do movimento Occupy é que o próprio movimento oferece o quadro  específico no qual muitas ações locais podem ressoar politicamente. O que nos  preocupa é o destino da ideia básica que torna possível essa ressonância: o que  implica? Aonde nos levará? Como essa ação pode ser mantida  ativa?
 Não  é acaso que a teoria da democracia de John Dewey – a democracia é um processo  social – tenha sido formulada, na maior parte, durante a Depressão dos anos  1930s, a pior crise financeira que o mundo conheceu, pelo menos até agora. Uma  severa deslocação econômica obriga a questionar a utilidade dos meios  convencionais pelos quais manifestamos nosso desejo geral: eleições, engajamento  em partidos políticos, atenção incansável às notícias do dia. 
 Quando  economias nacionais são destruídas pelo declínio da moeda, há desemprego em  massa, a atividade econômica quase pára, sem muita esperança de que possa ser  reativada, as conexões entre eleição e cada eleitor obter resultado que lhe  seja, no mínimo, satisfatório, para cada eleitor e sua família, ou para a  comunidade na qual vive o eleitor, são muito forçadas, esticadas até o limite do  rompimento. E é exatamente essa disjunção, entre o processo democrático e os  resultados aos quais ele aspira, que enfrentamos hoje – já no quinto ano de uma  crise financeira global, que começou com o colapso do mercado de papéis podres  nos EUA no final de 2007.
 A crise da democracia, que vivemos hoje, demorou mais de  30 anos para configurar-se plenamente. A fissura que separa a promessa  democrática de dar voz a todos e o que temos hoje é inerente ao modo como as  democracias de mercado vêm sendo governadas desde o final dos anos 1970s.  [5]
 Só  agora, em 2011, o euro, um dos pilares de sustentação de todo o sistema  financeiro global, aparece ameaçado, à vista de todos, e vê-se que as economias  de quatro países europeus enfrentam riscos gravíssimos. Afinal a fissura  apareceu e já pode ser enfrentada nas ruas.
 Há  pelo menos duas boas razões pelas quais os efeitos dessa fissura que compromete  a democracia foram ignorados até agora. Primeiro, porque o dia a dia das  finanças nos estados-nação contemporâneos são completamente determinados pela  operação dos mercados financeiros globais: vivemos no que Colin Leys chama de  “democracias movidas a mercado”, e assim tem sido há pelo menos 20 anos.  Segundo, porque se constituiu toda uma doutrina da cultura, para explicar que o  primeiro item acima seria inevitável, porque aquela seria “a natureza” do  governo, em qualquer sociedade.  
 Como Foucault mostrou, a ideia de que “mercados” sejam  realidades mais fundamentais que os governos tem raízes no final do século 18,  início do século 19, mas só alcançou plena maturidade no neoliberalismo de  Milton Friedman e Friedrich Von Hayek, que começou a infiltrar-se nos governos  ocidentais em meados dos anos 1970s. [6] 
 O  impacto desses dois fatores na experiência diária da democracia foi devastador.  Toda uma geração cresceu habituada a viver em democracias que absolutamente não  funcionavam, quer dizer: não funcionavam  como democracias.  
 Exceto  algumas exceções absolutas, quando o significado simbólico dos rituais  democráticos foi temporariamente mobilizado (como na eleição de Obama, em 2008,  que é a exceção mais notável), vemos, todos os dias, a realidade de uma  “pós-democracia”, onde os votos não contam no campo das decisões econômicas, com  consequências que afetam todos os demais campos da vida e do governo. [7]
 Verdade  terrível hoje é que vivemos em sociedades que só são democráticas no  nome.
 O  que mais chama a atenção no movimento  Occupy é que é tentativa  pacífica e coletiva, de expor e encarar essa terrível verdade ‘pós-democrática’,  e de explorar novos meios para que todos experienciem o desejo geral. 
 Não  surpreende, pois, que haja tantas dificuldades e incertezas. O declínio, ao  longo de décadas, dos partidos políticos e dos sindicatos em muitos países criou  legiões de pessoas sem qualquer experiência e nenhuma prática do que sejam os  processos e as artes da deliberação política. 
 Não que não haja oportunidade política. Mas é,  praticamente sempre, oportunidade política viciada e viciosa: há muitas formas,  como escreveu Pierre Rosanvallon, de praticar uma “contrademocracia”  [8] – meios para  protestar e dizer “não” – e pouquíssimas oportunidades de “ganhar experiência no  exercício do desejo geral” – influir e participar ativamente das decisões  políticas, quer dizer, praticamente nenhuma instância ou meio para que os  eleitores possam ver-se e ouvir-se dizendo “sim”.  [9] 
 O  movimento Occupy interrompe a rotina cega da  contrademocracia. Claro que diz vários “não” – aos salários e bônus pagos a  altos executivos de bancos, em troca do segredo eterno, para que não revelem o  que sabem; aos cortes nos orçamentos públicos que prejudicam os mais pobres, e  muitos outros ‘não’. Mas em todos esses casos, o “não” é parte do dizer “sim” à  possibilidade de pensar por outras vias sobre as consequências políticas da ação  dos mercados globais; é dizer “não” onde os mercados digam “sim”. Assim se pode  começar a reimaginar outros modos de pôr em ação a  democracia.
 Nada, porém, é mais difícil do que isso. Todos os dias,  quando acordamos para os noticiários, a economia é apresentada como destino,  como natureza. E temos de reaprender a vê-la como “espaço e exercício de  decisões” [10] –  e como processo que tem de ser exposto à discussão democrática. Para fazer isso,  é preciso abrir novas vias de pensamento, novos modos de pensar. E é preciso  também conseguir novos modos de agir, até construirmos o hábito, a prática, pela  primeira vez, de tratar nós mesmos e os que nos são próximos como cidadãos que  têm contribuição válida a fazer nas decisões sobre como a economia deve ser dirigida. 
 Isso  implica negar a vários outros – comentaristas de economia, porta-vozes de  empresas e de ONGs mantidas por corporações comerciais, ao poder corporativo em  geral e às faculdades de economia do mundo globalizado – o poder de monopolizar  o debate sobre a economia, que eles monopolizaram há tanto tempo. 
 Trata-se de ver como inadequada (e tratá-la como  ilegítima e danosa) a  aparente liberdade de  decidir no campo econômico que cada consumidor supõe que tenha porque tem um  cartão de crédito. Significa repor a economia no campo político e ético  democrático: instrumento para a busca comum por elementos necessários ao viver  bem. [11]
 É indispensável, em outras palavras, repensar nós mesmos como sujeitos políticos, como atores  políticos [12].  
 Essa  é a razão pela qual as formas imaginativas do movimento Occupy têm de ser acompanhadas com extrema atenção.  São muito mais que só espetáculo, por mais que, muitas vezes operem como  espetáculo.
 A pergunta grafitada no teto de uma barraca à frente da  Catedral St Paul – “O que Jesus teria feito?” (outra: um manifestante fantasiado  de Jesus levava um cartaz em que se lia “Algum motivo eu tive, pra expulsar os  vendilhões no templo, né-não?!” [13]) – era muito mais que maneira esperta de desmascarar a  falsa sofisticação das campanhas de publicidade & marketing também das  autoridades religiosas, num importante local de culto. Foi reformulação com  atenção à ética da política democrática, de muito do que se diz sobre o governo  da economia global que, por quase 40 anos, foi tratado como se fosse imune a  qualquer compromisso ético-democrático, superior à discussão política  democrática.
 O  que mais nos chamou a atenção, na ocupação à frente da Catedral de St Paul foi o  senso de deliberação séria, o compromisso com procurar outros meios para  articular o que está errado, com o que tem de ser feito. 
 Esse  específico experimento para redefinir o desejo geral talvez fracasse. Não  importa que a ideia desse experimento não frutifique ou que não ganhe corpo. A  ideia já está lançada nos movimentos  Occupy em muitos países e  replicada dentro dos países, em muitas cidades. Mas é preciso buscar alguns  sucessos, projetos em que o “desejo geral” apareça claramente expresso, para que  a ideia seja mantida ativa e possa ser tentada mais vezes.
 E  está emergindo um desafio ainda maior, de longo prazo: como conectar os  sucessos, se houver, do movimento  Occupy ao processo  político mais amplo? John Dewey escreveu sobre converter “a Grande Sociedade em  Grande Comunidade”, mas, infelizmente, os dois termos degradaram-se no uso  abusivo que receberam, como máscara para encobrir o negócio neoliberal de  sempre. Mas o que interessa não é como descrevemos o  processo.
 O  que interessa é o projeto que anima o processo e que só poderá emergir de luta  longa, intensa e coletiva, até que os ganhos de imaginação e de prática do  movimento Occupy sejam incorporados no processo político  formal. Se isso for mesmo impossível, até que consigamos descobrir meios para  manter ativo o trabalho criativo de repensar todo aquele processo  político.
 Em  muitas das até hoje plácidas democracias neoliberais – da Grécia à Grã-Bretanha  e aos EUA – há multidões de pé, nas ruas, prontas para dar andamento a essa  luta.
 Como intelectuais e acadêmicos que ainda têm o  privilégio de ter tempo para pensar e escrever, [14]  nossa principal tarefa talvez, hoje, seja sair de  nossas instituições, ouvir o que as ruas estão dizendo, voltar às nossas  universidades e, então, escancarar todas as portas ainda fechadas aos pobres  [15].
 Notas  dos tradutores
 [1]  Slavoj  Zizek fala à rede  Al Jazeera: “Agora,  o campo está aberto” (entrevista transcrita e traduzida),  8/11/2011.  
 [2]  Vale  lembrar, pra que se possa avaliar pelo menos um pouco do estrago que a  catástrofe neoliberal fez ao desenvolvimento do pensamento democrático, em todo  o mundo – mas muito especialmente no Brasil, que chegou ao neoliberalismo depois  de 30 anos de ditadura, 300 anos de escravidão e mais de 500 de governos de  “elites” MUITO ATRASADAS, sub-do-sub da “elite” portuguesa, que no século 15 já  era a “elite” (católica) mais atrasada da Europa – que John  Dewey foi o pensador que inspirava Anísio Teixeira (1900-1971), no  Brasil. Há vasta bibliografia sobre ele. Basta registrar, prôs que não o  conheçam, que Anysio Teixeira participou da construção do projeto do que deveria  ser (mas nunca foi) a Universidade de Brasília (UnB), inaugurada em 1961, da  qual foi reitor em 1963, até ser cassado pelo golpe militar de 1964. Anísio  morreu, em circunstâncias jamais esclarecidas completamente, dia 14/3/1971, ano  dos mais negros da violência da ditadura brasileira. Pois John Dewey é velho  conhecido dos brasileiros. Até Paulo Freire reconhece que muito deve àquele  pensamento. Está esquecido no Brasil – embora valha o suficiente ainda, pelo  menos, pra inspirar algum pensamento pró-democrático, em 2011, como se vê acima.  Que aqui fique registrado o fato, então, de mais uma das muitas perdas que nos  custou, por aqui, a catástrofe neoliberal.
 [3]  John Dewey, The Political Writings (Indianapolis: Hackett,  1993), 110. 
 [4]  Jean-Jacques Rousseau, The Social Contract and the Discourses  (London: Dent, 1973). 
 [5]  Nick Couldry, Why Voice Matters: Culture and Politics After  Neoliberalism (London: Sage, 2010).
 [6]   No  Brasil, as ideias do neoliberalismo são incansavelmente promovidas, até hoje,  sem parar um dia, pelo  Instituto  Millenium, que conta, entre seus afiliados, com muitos dos principais  jornalistas brasileiros: Ali Kamel, Carlos Alberto Sardembergh e José Nêumane  Pinto, para citar três (em ordem alfabética); e muitos dos mais conhecidos  “consultores” de economia, “ética” e outros negócios, todos sempre ativos pelos  principais jornais e na Rede Globo, no Brasil, como Bolívar Lemounier, Roberto  Civita, Roberto da Matta, Roberto Romano, para ficar nesses; e muitos diretores  de fundações e “avulsos” ativos, como Claudia Costin e Cora Ronai, para dizer  duas; e muitos articulistas feudatários de colunas fixas dos principais jornais,  como Demétrio Magnoli, Denis Rosenfeld, Eugênio Bucci (e até Marcelo Madureira,  Merval Pereira, Nelson Motta, Reinaldo Azevedo, Ricardo Amorim e Sandra  Cavalcanti – lacerdista histórica, lá presente, deve-se supor, em estado já de  ectoplasma, mas sempre reverenciada e citada por D. Dora Kramer, do Estadão, como  “a professora Sandra Cavalcanti” – lá estão!), para não encher essa lista com  dezenas de nomes; inúmeros ex-ministros dos governos do PSDB, como Edmar Bacha,  Luis Felipe Lampreia, Pedro Mallan, incansavelmente reverenciados como  “autoridades” nos programas da Globo News, o canal para assinantes da Rede  Globo; e, até, Yoani Sanchez, blogueira cubana conhecida em todo mundo pelos  serviços que presta à CIA, contra Cuba (todos, com nomes e fotos, estão listados  em Articulistas  e Especialistas.  
 [7]  Colin Crouch, Post-Democracy (
 [8]  Pierre Rosanvallon, Counter-Democracy
 [9] Colin Crouch, Post-Democracy (
 [10] Colin Crouch, Post-Democracy (
 [11] Colin Crouch, Post-Democracy (
 [12] J. K. Gibson-Graham, A Post-Capitalist Politics (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006),  87.
 [13]  Em “Levantem-se como  leões”, BELO filme distribuído dia 23/12/2011, por Anonymous, pelo Twitter, que pode ser visto (em  inglês).
 [14] Amartya Sen, On Ethics and Economics (Blackwell: Oxford.  1987). 
 
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