sábado, 20 de outubro de 2012

Invadida pelas privatizações, Varsóvia ilustra "frenesi" do livre mercado na Polônia 20/10/2012


 Roberto Almeida | Varsóvia

Até mesmo o Palácio da Cultura e Ciência, um presente de Joseph Stalin, já se tornou vítima dos outdoors gigantescos

Roberto Almeida/Opera Mundi


Na selva de aço, concreto e vidros espelhados do centro novo de Varsóvia, a fila de pessoas segue um neon que resiste bravamente, com seu brilho opaco, gritando um nome em vermelho: Emilia. Quem é? Emilia é o nome da antiga fábrica estatal de móveis, a Meble Emilia. Patrimônio arquitetônico polonês, ela foi vendida pelo governo por 115 milhões de zlotys, ou R$ 75 milhões. O neon vai cair e, em breve, ela pode deixar um buraco na história e virar mais um arranha-céu.

O prédio da Meble Emilia, de três andares e linhas retas, construído em 1976, foi adotado pelo Museu de Arte Moderna da Polônia para uma única exposição, inaugurada no último dia 12 de outubro, sobre a evolução da arquitetura e da publicidade no país. O título sugere o momento que Varsóvia atravessa, com os arroubos de um capitalismo feroz, e o quanto a privatização da loja é simbólica: Miasto n Sprzedzaż, ou Cidade à Venda.

“Bem-vindo à Polônia”, disse um funcionário do museu a Opera Mundi, como se levantasse o tapete para mostrar a sujeira. “Não sabemos o que vai acontecer, mas pode ser que essa seja a última exposição no prédio. Daqui saíram os melhores móveis poloneses, é muito marcante. Hoje ele é uma referência, mas pode virar um igual a todos os outros.”


Para entender esse pessimismo, basta olhar pela janela. O cenário é de extremos. Na principal avenida da cidade, a Marszalkowska, os outdoors têm pelo menos oito andares e encobrem quase completamente as fachadas austeras dos edifícios do período comunista, apagando o passado com mensagens estridentes de consumo.

Na mesma avenida, ao redor da superpopulosa estação Centrum do metrô, um enorme shopping center, com as marcas britânicas H&M, Marks & Spencer e TkMaxx, rouba a cena com anúncios de moda monstruosos e coloridos, logo em frente à brutal imponência do Palácio da Cultura e Ciência, o prédio mais alto da Polônia.

Até mesmo o palácio, construído a mando de Joseph Stalin em 1952, e ofertado aos poloneses como um presente da União Soviética em 1956, já foi vítima dos outdoors gigantescos. Durante a Eurocopa deste ano - Varsóvia foi uma das sedes do torneio europeu de futebol - ele carregou uma bandeira com patrocinadores que quase encobriu seus 42 andares.
Roberto Almeida/Opera Mundi


O prédio, que hoje sedia um complexo de cinemas, teatros e exposições, não é unanimidade entre os poloneses, mas estampá-lo com anúncios, para os curadores da exposição, foi como colocar um cartaz de Coca-Cola no Big Ben, em Londres, uma propaganda de margarina na Estátua da Liberdade, em Nova York, ou a logomarca de um a marca de câmeras fotográficas no Portão de Brandenburgo, em Berlim.

“Otimistas, pensamos que até a Eurocopa de 2012 conseguiríamos limpar essa sujeira toda de propaganda. Houve até um momento em que achamos que estávamos próximos de atingir o objetivo. Foram os pessimistas, porém, que se provaram certo no final”, escreveu o arquiteto e ativista polonês Marcin Rutkiewicz, em um dos manifestos da exposição. Ou seja, ainda não há regulamentação de publicidade na Polônia e pouco cuidado com parte do patrimônio histórico.

A loja Emilia, fundada em 1976, foi comprada pelo fundo privado Griffin Topco II, com sede em Luxemburgo. O controlador do fundo é o Oaktree Capital Group, que tem sede em Los Angeles, nos Estados Unidos. Ela fica fora do centro histórico e turístico de Varsóvia, completamente destruído durante a Segunda Guerra Mundial pelos nazistas e em reforma permanente pelo governo polonês.

Ideais de cidade

A Polônia, com seus 38 milhões de potenciais consumidores, navega a crise econômica europeia com uma certa calmaria. As taxas de desemprego não passam dos 10%, muito abaixo dos países mais afetados pelo péssimo momento que vive o bloco. O PIB (Produto Interno Bruto) polonês deve desacelerar este ano, mas a estimativa é que tenha crescido mais de 4% no ano passado. Desde 2000, a média tem sido de 3% - valores muito superiores à média na Europa e comparável à do Brasil.

Varsóvia, com seus 1,7 milhões de habitantes, vem a reboque nesse crescimento, e o sintoma mais claro é a radical transformação do que se vê na superfície. Canteiros de obras e guindastes se revezam na construção de prédios de escritórios no entorno da Warszawa Centralna, a Estação Central, competindo em altura com o Palácio da Cultura e Ciência. O choque mexe com arquitetos e ativistas.

Roberto Almeida/Opera Mundi
O prédio da loja Emilia estava abarrotado na abertura da exposição. Pequenos cartazes foram impressos com os dizeres A Cidade NÃO está à Venda (Miasto NIE na Sprzedaz) e um setor inteiro foi dedicado à corrente guerrilha contra os gigantescos outdoors - desde exemplos de pessoas que, de suas janelas, cortaram buracos nos cartazes para poder olhar para a cidade, até protestos de organizações de direitos humanos.

“Críticas ao caos espacial na Polônia são crescentes. Lemos sobre um ‘espaço gritante’, sobre outdoors agressivos, sobre não existirem provisões legais e sobre as falhas em executar as provisões que existem”, relata o arquiteto Blazev Brzostek. “Ao mesmo tempo, novos grupos de entusiastas aparecem, pedindo a preservação de velhos neons e mosaicos de parede, por exemplo. Parece que essas ações são mais sintomáticas de uma busca por continuidade cultural do que por um entusiasmo passageiro de ver os tempos de comunismo como cool.”

Além dos neons da loja Emilia, alguns poucos podem ser vistos em uma loja de instrumentos musicais na Praça da Constituição, mais ao sul da cidade, na mesma avenida Marszalkowa dos shopping centers. Do outro lado da rua, porém, um prédio inteiro foi encapado por um anúncio da Samsung, que também colocou sua logomarca no terraço.

“O frenesi do livre mercado que varreu a Polônia nos anos 1990 criou um novo cenário urbano. Para alguns, era uma prova confortante de atividade social, para outros um sintoma de deterioração estética”, afirma Brzostek. “O abandono [da herança comunista] tornou invisíveis os avanços estéticos do passado, dispensados sem remorso. É dinheiro ruim que expulsa o que há de bom”, diz.

Opera Mundi

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