domingo, 3 de novembro de 2013

Paul Krugman: Uma guerra contra os pobres 03/11/2013

Vermelho
John Kasich, governador republicano de Ohio [estado dos EUA], tem feito coisas surpreendentes recentemente. Primeiro, driblou a legislatura do seu estado – controlada por seu próprio partido – para avançar com a expansão, financiada pelo Governo Federal, do Medicaid, uma peça importante da Obamacare [reforma da saúde do presidente Barack Obama].

Por Paul Krugman*, no The New York Times

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Manifestantes protestam contra desemprego nos EUA.

Defendendo a sua ação, [Kasich] despregou-se dos seus aliados políticos, declarando: “Estou preocupado com o fato de parecer haver uma guerra contra os pobres. Porque se você é pobre, de alguma forma você é indolente e preguiçoso”.

Obviamente, Kasich não é o primeiro a fazer esta observação. Mas é revelador o fato de ela vir de um republicano com boa projeção (ou talvez não mais), e realmente, alguém que costumava ser conhecido como um agitador conservador.

A hostilidade republicana com relação aos pobres e desafortunados atingiu, agora, tamanha febre, que o partido não se pronuncia sobre qualquer outra coisa, na verdade – e apenas observadores voluntariamente cegos podem falhar em enxergar esta realidade.

A grande questão é o por que. Mas, primeiro, falemos um pouco mais sobre o que está consumindo a direita.

Eu às vezes vejo gurus afirmando que o movimento Tea Party [conservador] é, basicamente, motivado por preocupações relativas ao déficit orçamentário. Isso é ilusório. Leiamos a lengalenga fundacional de Rick Santelli da CNBC [canal televisivo]: Não há qualquer menção aos déficits. No seu lugar, há uma bronca contra a possibilidade de o governo talvez ajudar os “perdedores” a evitarem embargos.

Ou leia as transcrições de Rush Limbaugh, ou outro apresentador de programas de rádio de direita. Não se fala muito de responsabilidade fiscal, mas há muito dito sobre como o governo está recompensando os preguiçosos e não-merecedores.

Os republicanos com posições de liderança tentam modular um pouco a sua linguagem, mas isso é mais uma questão de tom do que de substância. Ainda estão se certificando que os pobres sem sorte obtenham o mínimo possível de ajuda, de forma tão claramente apaixonada que – como disse o deputado Paul Ryan, presidente do Comitê Orçamentário da Câmara – a rede de segurança está se tornando uma “rede [de descanso] que faz ninar pessoas de corpos capazes, para vidas de dependência e complacência”. E as propostas orçamentárias de Ryan envolvem cortes selvagens em programas de assistência, como os auxílios-alimentação e o Medicaid [programa de saúde para famílias e indivíduos de renda baixa].

Toda essa hostilidade contra os pobres culminou de uma recusa verdadeiramente chocante de muitos estados em participar da expansão do Medicaid. Tenhamos em mente que o Governo Federal pagaria por essa expansão, e que o dinheiro gasto, então, beneficiaria os hospitais e a economia local, assim como os recipientes diretos.

Mas a maioria dos estados controlados pelos republicanos está, como ficou visto, disposta a pagar preços econômicos e fiscais elevados para assegurar que a assistência não alcance os pobres.

Mas isso não foi sempre assim. Voltemos rapidamente a 1936, quando Alf Landon recebeu a nominação republicana para a presidência. De muitas formas, o discurso de aceitação de Landon previu temas tomados por conservadores modernos.

Ele lamentou uma recuperação econômica incompleta e a persistência do alto desemprego, e atribuiu a fraqueza persistente da economia à intervenção excessiva do governo e à incerteza que ele alegou ser consequência disso.

Mas ele também disse o seguinte: “Desta depressão surgiu não apenas o problema da recuperação, mas também o problema igualmente grave de assistir aos desempregados até que a recuperação seja alcançada. Auxiliá-los integralmente é uma questão de dever. Nós, do nosso partido, prometemos que essa obrigação nuca será negligenciada”.

Dá para imaginar um nominado republicano moderno dizendo uma coisa dessas? Não em um partido comprometido com a visão de que os trabalhadores desempregados se safam facilmente, que eles são tão afagados pelo seguro desemprego e auxílio-alimentação que não têm incentivo para sair à procura de um emprego.

Então, do que se trata tudo isso? Uma razão, sugere o sociólogo Daniel Little, em um ensaio recente, é a ideologia de mercado: Se o mercado está sempre certo, então as pessoas que acabam empobrecidas devem merecer serem pobres. Eu ainda diria que alguns líderes republicanos estão, em suas concepções, agindo de acordo com fantasias libertárias adolescentes.

“É como se nós estivéssemos novamente vivendo uma novela de Ayn Rand [escritora que teorizou sobre a filosofia da objetividade, em que a realidade existe independente da consciência humana]”, declarou Paul Ryan em 2009. Mas também há, como disse Little, a mancha que não desaparece: a raça.

Em um recente memorando bastante difundido, a Democracy Corps, organização de pesquisa de opinião pública inclinada aos democratas, relatou os resultados de sessões mantidas com membros de várias facções republicanas.

Eles concluíram que a base republicana é “bastante consciente de ser branca em um país em que é cada vez mais a minoria” – e de ver a rede social de assistência tanto como algo que ajuda “aquelas pessoas”, não pessoas como ela própria, e de ligar o aumento da população não branca ao Partido Democrata. E, sim, a expansão do Medicaid que muitos estados estão recusando teria ajudado de forma desproporcional os negros empobrecidos.

Assim, realmente há uma guerra contra os pobres, que coincide com e aprofunda as dores de uma economia problemática. E essa guerra é, agora, a questão central e definidora da política dos Estados Unidos.

**Paul Krugman é um economista renomado mundialmente, vencedor do Nobel de Economia de 2008 e colunista do The New York Times desde 2000.

Fonte: The New York Times
Tradução de Moara Crivelente, da redação do Vermelho

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