quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Novo modelo de mídia na América Latina pode ser criado pelo Brasil 26/12/2012


RELATOR DA ONU PARA LIBERDADE DE EXPRESSÃO DEFENDE MELHOR DISTRIBUIÇÃO DE CONCESSÕES DE TV E COMBATE A MONOPÓLIOS, SEM INTERFERÊNCIA NO CONTEÚDO

NELSON DE SÁ, DE SÃO PAULO - Folha de S.Paulo

Relator especial da ONU para liberdade de expressão, Frank La Rue defende que o Brasil estabeleça um novo modelo para a mídia na América Latina, a partir do que vêm fazendo Argentina e Uruguai. Ele dá "apoio técnico" aos dois na implantação de suas novas leis de mídia.

Em encontros na semana passada em Brasília, com os ministros Paulo Bernardo (Comunicações) e Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral da Presidência), entre outros, ofereceu o mesmo apoio ao Brasil para uma legislação visando "regular as comunicações".
Em sua opinião, "como a América Latina teve um desenvolvimento errado, nas políticas comerciais de comunicação, é importante reverter".

Mas La Rue defende melhor distribuição de concessões de televisão e combate a monopólios, não regulação de conteúdo.

Nesse sentido, descreve em entrevista como, ao defender o canal Globovisión da perseguição na Venezuela, acabou enfrentando reação do presidente Hugo Chávez. Aos 60 anos, ele escreve regularmente no jornal "La Prensa", da Guatemala.

*

Folha - Como o sr. viu o relatório Leveson, sobre os desvios da imprensa inglesa?

Frank La Rue - Como relator, sempre digo que a liberdade de expressão deve ser direito de todos, universal: dos jornalistas, dos meios, mas de toda a população também. Tanto o direito de disseminar como o direito de receber informação, com diversidade e pluralismo.

E as concentrações de mídia ameaçam essa informação, esse pluralismo. Tem de haver meios de todo tipo, privado, público. Além disso, no plano empresarial, os monopólios são uma ameaça à liberdade de comércio, porque são concorrência desleal.

Isso é especialmente importante nos EUA, onde há leis antimonopólio comercial. Pois bem, em direitos humanos, na liberdade de expressão, passa-se o mesmo: as concentrações, produto da desregulação que houve em muitos países, são muito danosas.

E esse é o caso inglês.

É o caso de Rupert Murdoch. O que acontece quando ele chega a ter tanto poder que [seus jornais] creem estar acima da lei e dispostos a violar a privacidade dos cidadãos? A violar comunicação oficial, como era o caso da família real?

Creem ter o direito de fazer muitas coisas, com o intuito de alimentar notícias para o tabloide e vender. É um escândalo, e não teria acontecido num país em que se limitam as concentrações e os monopólios, onde se regula o tema da mídia.

Murdoch pôde fazer isso na Inglaterra, mas não pôde fazer isso nos EUA. Outro exemplo de como a concentração de meios de comunicação leva à concentração do poder político é Silvio Berlusconi, que voltará a ser candidato dentro de pouco tempo na Itália.

É muito perigoso, porque é um atentado à liberdade de expressão e à democracia. Essa é a minha opinião: não se podem permitir esses monopólios.

O relatório Leveson propõe participação estatal na supervisão da imprensa. Há lugar para o Estado aí?

Essa é a pergunta mais difícil. Creio que o Estado tem de regular os meios de comunicação social, porque são um serviço público.

Há concessões de radiodifusão.

Sim, mas as concessões são o mais fácil, porque são concessões de frequência de rádio, de TV, agora frequências para internet. É mais fácil, porque são propriedade do Estado. É um recurso natural, digamos, que o Estado deve administrar, como os recursos de seu solo, água, petróleo.

Aí sim deve haver claríssima regulação, para estar a serviço do bem comum, de toda a população. Há frequências que podem ser comerciais, mas outras devem ser comunitárias ou para povos indígenas.

E hoje só vê [a questão] sob a ótica comercial, é um processo da América Latina. Já na Europa, por exemplo, uma das primeiras e mais eficientes rádios é a BBC, que é pública, financiada pelo Estado.

É um serviço excelente, então não é um problema na Inglaterra. A rádio Nederland é igual. A rádio Exterior, da Espanha. É preciso recuperar o espaço da comunicação pública e comunitária na América Latina. Por isso eu saudei a lei argentina.

A lei de mídia.

É um bom passo. Mas a pergunta difícil é: O que fazer com os meios escritos? Creio que, se o conteúdo viola direitos de outros, o Estado deve proteger os outros, nada mais. O Estado não pode decidir qual deve ser ou não ser o conteúdo.

O que deve regular, sim, é a concentração, pelo poder político alterado que dá aos proprietários dos meios e porque viola o princípio da diversidade e do pluralismo. Nos EUA, numa mesma cidade, quem tem um jornal não pode ter uma emissora de televisão. Têm de ser dois proprietários distintos, para provocar equilíbrio de visões.

A experiência americana é um modelo, na sua opinião?

Sim, a ideia é fazer com que os conteúdos sejam diversos. Não intervém no conteúdo, mas gera diversidade.

Na Argentina, o "Clarín" está sendo forçado a vender parte de seus canais de TV paga. O Estado não está indo longe demais?

É uma parte menos conhecida da lei. É um processo de desmonopolização. Os EUA fizeram o mesmo com a AT&T. Era uma empresa de telefonia muito eficiente e fizeram com que surgissem todas as Baby Bells, porque os monopólios são uma violação também à legislação comercial.

A Comissão para a Proteção de Jornalistas e o Instituto Internacional de Imprensa divulgaram, há pouco, números recordes de jornalistas presos e mortos ao redor do mundo. O que está acontecendo? Por que os jornalistas se tornaram alvos?

Meu relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, neste ano, foi sobre proteção a jornalistas. O que está ocorrendo, na minha opinião, é que a internet provocou muito medo entre os líderes políticos autoritários e também entre alguns líderes democráticos.

É muito difícil manter segredos agora. "Whistle-blowers" [vazadores] podem fazer denúncias, "leaks" [vazamentos]. A experiência da Tunísia e do Egito foi o que causou maior pânico.

Entraram em colapso dois governos ditatoriais, que tinham o controle total de seus países, militarmente. O que há agora é uma atitude de pânico com a internet. E quem mais usa a internet é a imprensa. Creio que é por isso, pelo temor que os políticos no poder começaram a sentir da imprensa. Começaram a querer silenciar.

Mas em outros lugares é o crescimento do crime organizado. Na América Latina, é principalmente narcotráfico e tráfico de pessoas, o que inclui mulheres e crianças.

Muitos jornalistas são vítimas de represálias ou caem em meio às batalhas de território, como no Norte do México. Há zonas de quase guerra, como Ciudad Juarez, em que os jornalistas correm perigo constantemente.

Também em meu país, a Guatemala, onde a imprensa denunciou que muitos funcionários foram financiados por quadrilhas de lavagem de dinheiro e de narcotráfico. A violência contra jornalistas demonstra uma falha no sistema de Justiça: a impunidade.

Pode haver causas múltiplas, mas o problema mais grave é que a Justiça não funciona. Cada caso sem investigação e sem processo é um convite para que aconteçam muitos mais.

Como o sr. vê o Brasil, nesse ponto?

Não quero me pronunciar, porque não é uma visita oficial. Mas uma coisa eu quero dizer. Me parece que o Brasil está num momento interessante, em que pode elaborar as leis de regulação da mídia, as leis antimonopólio, as normas de uso das frequências, e eu ofereci apoio técnico, profissional. Ofereci acompanhar esse processo.

Fiz isso na Argentina e acabo de começar a fazê-lo no Uruguai, onde estive com o governo uruguaio e vou voltar quando apresentarem o projeto ao Congresso. Gostaria de fazer o mesmo no Brasil, quando se fizer uma lei.

Outro tema é o acesso à internet. O Brasil tem uma estatística interessante, mais ou menos 50% da população com acesso direto ou indireto à internet. É muito bom, um nível alto para países do Sul, em vias de desenvolvimento.

E eu propus ao governo brasileiro um diálogo Sul-Sul, no Ibas, entre Brasil, África do Sul e Índia, talvez também Indonésia. Armar um diálogo original sobre as políticas de acesso, sobre como fomentar o acesso à internet nos países dos diferentes continentes, me parece realmente importante.

Sobre a lei de mídia...

Como a América Latina teve um desenvolvimento errado, no sentido das políticas comerciais de comunicação, é muito importante reverter isso.

E é muito interessante o que está se passando no Mercosul: o que fez a Argentina, o que está fazendo o Uruguai e o que pode ser o Brasil. Se a Bolívia se incorporar ao Mercosul, com as políticas de rádios comunitárias para povos indígenas, pode ser importante.

Também o Chile, se regressar a presidente Michele Bachelet. Isso tudo pode ser muito significativo para todo o continente americano, especialmente o Brasil. É um país de tanto peso. O que o Brasil decidir, no futuro, sobre como regular as comunicações, especialmente a concessão de frequências e a digitalização, todo o tema de como facilitar o acesso à internet... Creio que o Brasil está convocado a estabelecer um modelo no continente.

Como está o projeto uruguaio de lei de mídia?

A tendência é fazer algo parecido com a lei argentina, mas ainda mais avançado. Por exemplo, devem mudar as frequências para ficar com concessões comerciais, públicas e comunitárias, mas também devem ter muito mais sobre proteção à infância, inclusive no tema dos comerciais, que tipo de anúncio permitir nos horários infantis.

O sr. não pode tratar da perseguição de jornalistas no Brasil?

Não posso. Mas sei que há o relatório da CPJ, de Nova York, e vi os casos do Brasil. Todos os jornalistas me preocupam, em todas as partes do mundo. Creio que é lamentável e, sim, gostaria de ouvir eventualmente do governo e do Ministério Público que investigação se fez nesses casos. Isso para mim é talvez o mais importante: romper a impunidade.

O sr. já falou sobre a perseguição a jornalistas em Honduras, na China, México, Irã. E dois anos atrás o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, até pressionou por sua demissão da ONU. Como vê esse tipo de reação?

Não sei se pediu meu cargo, mas Chávez e o governo foram muito críticos da minha posição. Fui convidado a Caracas, para um ato acadêmico muito concorrido e um encontro com a imprensa.

Não houve problemas, não falei da Venezuela, mas, sim, falei dos princípios da liberdade de expressão. Creio que, no caso de Chávez, há uma reação terrivelmente autoritária.

Entendo que é um presidente popular, que ganhou as eleições, mas isso não dá o direito de impor sua vontade e silenciar críticas. Minha posição sempre foi que todo mundo tem direito à liberdade de expressão.

A altenativa não é calar ou fechar os meios, como a Globovisión. A alternativa é permitir que surjam mais, que haja mais comunicação. Quanto mais comunicação, melhor. Mas eu sou, sim, crítico do governo Chávez, porque é um governo autoritário que não suporta a crítica.

Como o sr. vê os EUA em relação à liberdade de imprensa? O caso WikiLeaks mostra que também têm os seus limites?

Creio que a Primeira Emenda da Constituição americana dá um espaço muito amplo de liberdade de imprensa, bem maior do que na maioria dos países. Às vezes até maior do que eu permitiria, como na existência da Ku Klux Klan como organização legal, quando é uma organização racista.

Em termos de imprensa, é bom que seja assim, porque permite que se fale tudo. Soltei um comunicado sobre o WikiLeaks, dizendo que as revelações eram massivas e, pela quantidade, eram muito embaraçosas para os EUA.

Mas não eram uma violação da segurança nacional. É uma publicação absolutamente legítima. Os vazamentos sempre têm sido publicados, veja-se o escândalo Watergate. Creio que não há justificativa, aí.

Para mim, Julian Assange [fundador do WikiLeaks] não deve ser condenado. Na Inglaterra, quiseram prendê-lo por outro motivo, a questão da Suécia. Não sei se é verdade ou não, mas certamente, pela publicação do vazamento, ele não pode ser condenado por nada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário