Um paraíso fiscal que virou pesadelo para toda a Europa
Por José Carlos de Assis*
Em algum momento algo como a crise
de Chipre teria de acontecer para expor ao mundo, de forma pedagógica, a
monstruosidade que se tornou o sistema financeiro internacional. Chipre
é uma ilha insignificante do Mediterrâneo com um PIB de pouco mais de
10 bilhões de euros. Nada que tenha acontecido ali deveria, em tese,
abalar o sistema bancário europeu, mesmo que o montante de seus ativos
financeiros especulativos atinja cerca de 8 vezes o PIB. Contudo, a
estupidez alemã transformou a crise nessa ilha de fantasia, nada mais
que um paraíso fiscal para magnatas russos, num bumerangue com potencial
de reverter sobre a Europa e o mundo.
Foram os alemães como mandantes nos bastidores da troika – Comissão
Europeia, BCE e FMI - que tiveram a ideia fantástica de exigir como
garantia de um empréstimo de 10 bilhões de euros para estabilizar o
sistema bancário cipriota um imposto excepcional sobre depósitos em seus
principais bancos. O imposto deveria atingir inclusive a parte dos
depósitos coberta por seguro (100 mil euros) o qual protege depósitos de
todos os países que aderiram ao euro. Considerado o tamanho de Chipre, o
efeito seria irrelevante. Considerado o precedente, é como uma pequena
gravidez: a insegurança está instalada em toda a zona do euro, sobretudo
no sul da Europa.
Trata-se de um confisco que vai assustar a todos os investidores e
especuladores nas suas relações com os bancos europeus já fragilizados
pela crise financeira e fiscal. Alguém pode esfregar as mãos e dizer:
ótimo, que os bancos de Chipre paguem pelos seus pecados, principalmente
pelo pecado de lavar dinheiro ilegal russo. Bem, tivemos algo similar
com o Lehman Brothers: o secretário do Tesouro norte-americano decidiu
fazer jogo duro em nome do liberalismo, e o resultado pagamos ainda hoje
sob a forma de cinco anos de virtual estagnação no mundo
industrializado avançado e grande oscilação nos países em
desenvolvimento.
O fato é que os alemães, como árbitros da troika, estão conduzindo a
política europeia de repressão fiscal como um aspecto de seus
preconceitos morais calvinistas, e não como uma questão financeira.
Fizeram assim na Grécia, na Irlanda, em Portugal, na Espanha e agora na
Itália. Em todos esses países estão impondo políticas extremamente
restritivas do ponto de vista fiscal impedindo qualquer possibilidade de
volta do crescimento. São cinco anos seguidos de crise. A esses paises
se somou a Inglaterra, que mesmo tendo moeda própria, filiou-se ao clube
da repressão fiscal, para entrar, também ela, na fila da recessão
permanente.
Com Chipre, porque parece suficientemente pequeno para não poder
esboçar qualquer reação, a troika a serviço de Merkel deu um passo
avante, no sentido de sinalizar a todos os depositantes em bancos na
Europa que, na medida do avanço da crise, poderão ser confiscados. É
claro que todo mundo que tem dinheiro, se tiver um mínimo de bom senso,
retirará suas poupanças dos bancos das economias mais vulneráveis para
depositá-las em bancos alemães e, em último caso, norte-americanos.
Teremos muito provavelmente uma reedição em alguma escala – não sei se
muito grande, ou muito pequena, pois a incerteza está instalada – do
Lehman Brothers.
Não importa que hoje ou amanhã a decisão da troika seja revertida ou
transformada em algo mais palatável. O mal está feito. É que, num
determinado momento, as maiores autoridades financeiras e econômicas da
Europa concordaram com a medida antes impensável de tributar depósitos
bancários. Não só concordaram, mas a impuseram. Portanto, em situações
similares no futuro, em qualquer país cujos bancos estiverem em grande
dificuldade, poderão voltar a exigir a mesma medida. Se isso não for um
expediente caviloso para liquidar com os bancos do sul da Europa e
alimentar os gatos gordos do norte é difícil ver outro propósito.
Talvez no fim disso tudo haja um
lado bom: a progressiva liquidação de bancos de paraísos fiscais como
Chipre na medida em que os aplicadores tomem consciência dos riscos de
colocarem seu dinheiro em instituições que não passam de bases
especulativas para lavagem de dinheiro. Logo depois do início da crise,
em 2008, França e Alemanha se alinharam no sentido de acabar com os
paraísos fiscais. Depois não se viu falar mais nisso, mesmo porque os
norte-americanos não se moveram. Com algumas quebras nos paraísos a
partir de Chipre, talvez o melhor aconteça.
*Economista e professor de Economia Internacional da UEPB, autor,
entre outros livros de Economia Política, de “A Razão de Deus”, ed.
Civilização Brasileira.
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