Quão justo é o esforço para salvar o euro se as pessoas que vivem nos países que estão recebendo ajuda financeira são mais ricas do que os cidadãos dos países doadores, como a Alemanha? Um debate sobre a redistribuição dos encargos da crise já deveria ter sido realizado há muito tempo.
As imagens das capitais dos países europeus em crise que temos visto são confusas, para dizer o mínimo. Na capital cipriota, Nicósia, por exemplo, milhares de pessoas protestaram contra a imposição de um imposto sobre os depósitos bancários, exibindo fotos de Hitler e cartazes anti-Merkel. Um desses cartazes dizia: "Merkel, seu dinheiro nazista é mais sangrento do que qualquer dinheiro lavado".
A chanceler alemã Angela Merkel foi recebida por uma cena semelhante quando visitou Atenas, em outubro de 2012. Um homem mais velho, com um bigode cuidadosamente aparado e calças bem passadas se postou na Praça Syntagma. As palavras escritas no cartaz que ele segurava contrastavam com sua aparência afável: "Saia do nosso país, sua vagabunda".
Apesar desses abusos, os manifestantes e todos os outros críticos de Merkel em Roma, Madri, Nicósia e Atenas concordam em uma coisa: a Alemanha deve pagar pela operação de resgate financeiro do euro – tanto quanto for possível e certamente mais do que pagou até agora.
Eles argumentam que a Alemanha é um país rico, que se beneficiou mais do que todos os outros com a introdução do euro, e que inundou os outros países europeus com suas exportações, tornando-se mais próspera à custa deles.
Alemães têm menos recursos do que aqueles que estão pedindo dinheiro
Mas há também uma segunda imagem da Alemanha, que é baseada em números, e não em emoções. Os dados foram obtidos pelo BCE (Banco Central Europeu) e divulgados na semana passada. Essa imagem retrata um país cujas famílias possuem menos recursos, na média, do que as famílias dos países que estão solicitando o dinheiro alemão.
Nesse ranking de ativos, o Chipre aparece em segundo lugar entre os países europeus, enquanto a Alemanha ocupa uma posição muito inferior – inferior à posição de outros dois países afetados pela crise: a Espanha e a Itália.
E esse Chipre, com suas famílias abastadas, agora deve receber 10 bilhões de euros (ou US$ 13,1 bilhões) do MEE (Mecanismo Europeu de Estabilidade), fundo de resgate financeiro permanente dos países que utilizam o euro como moeda, e do FMI (Fundo Monetário Internacional) – pelo menos de acordo com a as decisões tomadas após negociações dramáticas, que deverão ser aprovadas esta semana pelo parlamento alemão, o Bundestag. Mas uma nova dúvida está surgindo: por que exatamente estamos fazendo isso? O Chipre não é rico o suficiente para ajudar a si próprio?
À luz do novo estudo do BCE, uma nova discussão sobre a estratégia de resgate financeiro do Grupo do Euro se torna de fato necessária. Até agora, os contribuintes têm arcado os riscos dessa estratégia, garantindo todos os empréstimos que o MEE tem pagado aos países necessitados. Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha já fazem parte desse grupo, e agora o Chipre foi incluído na mistura.
A Alemanha já está garantindo cerca de 100 bilhões de euros em empréstimos. Se um número ainda maior de países solicitar ajuda financeira e, em seguida, esses países não puderem mais servir como doadores de recursos, a quantidade de dinheiro garantido pelos alemães pode subir para 509 bilhões de euros, de acordo com uma estimativa da Associação dos Contribuintes da Alemanha. E essa cifra nem chega a incluir os riscos latentes que aparecem no balanço do Banco Central Europeu.
Encargos unilaterais
Além disso, as taxas de juros estão baixas demais, pois o BCE está inundando a zona euro de dinheiro para estabilizar o sistema. Atualmente, as pessoas que poupam seu dinheiro estão levando a pior, pois estão sendo furtivamente destituídas de seus recursos. Por outro lado, as pessoas que têm dinheiro suficiente para investir em ações e imóveis estão se beneficiando com o boom desencadeado pela inundação de fundos provenientes do BCE. Em outras palavras: os contribuintes e os poupadores comuns estão pagando pelos esforços empregados no resgate financeiro do euro, que beneficiam principalmente as pessoas ricas que vivem nas economias mais problemáticas da Europa. Os ativos desses cidadãos abastados permanecem praticamente intocados, enquanto que os bens de seus salvadores estão derretendo.
No passado, só se esperava que os mais cidadãos mais afluentes participassem de resgates financeiros duas vezes. No caso da Grécia, os proprietários de títulos do governo grego tiveram que abrir mão de uma parte de seu valor, e, no caso de Chipre, os depósitos bancários superiores a 100 mil euros foram parcial ou totalmente perdidos.
Ambos os casos marcam uma virada nessa situação, pois indicam que os governos doadores não estão mais dispostos a arcar com todos os riscos sem que os beneficiários privados do resgate financeiro do euro também paguem parte da conta.
Mas esse pode ser apenas o início. A estratégia atual não é apenas injusta, pois ela distribui os encargos de forma unilateral: ela também é economicamente perigosa, pois poderia colocar um peso grande demais sobre os ombros dos países doadores. E, se eles começarem a esmorecer, a união monetária iria inevitavelmente se desintegrar.
Além disso, os programas de ajuda financeira implementados até o momento apenas substituíram os empréstimos antigos por novos, de modo que os países mutuários nunca conseguirão se livrar de suas pesadas dívidas. Pelo contrário: as medidas de austeridade necessárias estão sufocando a Grécia e outros países do sul da Europa, além de fazerem suas economias encolherem.
Os países em crise deveriam confiscar ativos
Seria mais sensato – e justo – se os países em crise pudessem exercer seu próprio poder para reduzir suas dívidas. Ou seja: se eles utilizassem os bens de seus cidadãos mais do que fizeram até o momento. Como mostra o mais recente estudo do BCE, certamente há dinheiro suficiente disponível para que isso seja feito.
Os números são potencialmente explosivos. Por exemplo: a família média alemã detém 195 mil euros em ativos, quase 100 mil euros a menos do que a família média espanhola. O patrimônio médio líquido das famílias de Chipre soma 671 mil euros, mais de três vezes o valor do patrimônio médio líquido das famílias alemãs. As famílias italianas e francesas também são significativamente mais ricas do que suas correspondentes alemãs.
As diferenças são ainda mais acentuadas quando se analisa a mediana do patrimônio líquido, que é o patamar financeiro máximo alcançado pela metade mais pobre da população e superado pela metade mais rica da população. De acordo com essa medida, a Alemanha, com 51,4 mil euros, aparece, na verdade, em último lugar na zona euro. O valor correspondente para Chipre é cinco vezes maior. A mediana do patrimônio líquido também é maior em Portugal – país que também foi atingido pela crise – do que na Alemanha.
As conclusões do estudo BCE tinham acabado de ser publicadas quando vários esforços para relativizar e ocultar os números começaram. Aparentemente, os resultados se mostraram constrangedores tanto para o próprio BCE quanto para o governo alemão.
Quando os políticos da União Democrata Cristã (CDU), da centro-direita alemã, e seu partido irmão da Baviera, a União Social Cristã (CSU), examinaram os números confusos durante um café da manhã, na quarta-feira passada, e se dirigiram com um olhar interrogativo ao ministro da Fazenda alemão, Wolfgang Schäuble, ele respondeu com um encolher de ombros.
Schäuble não estava disposto a oferecer uma interpretação clara para os dados. Por fim, ele comentou que os números não eram tão claros quanto aparentavam ser – e ninguém fez mais nenhuma pergunta.
Schäuble havia alcançado seu objetivo, considerando-se seus temores de que o material seria uma munição muito bem-vinda para os críticos da política de resgate financeiro atual. Até mesmo o BCE, que aparentemente se sentiu desconfortável com seus próprios números, divulgou uma série de notas de rodapé para minimizar significado das estatísticas.
O BCE observou, por exemplo, que a família média cipriota é composta por três pessoas, enquanto que a família média alemã tem apenas dois membros. Isso é verdade. Mas, mesmo assim, uma diferença de 50% no tamanho da família não é capaz de explicar uma diferença de 200% no patrimônio médio.
Mais convincente foi a nota segundo a qual as diferenças de patrimônio podem ser atribuíveis principalmente aos hábitos de propriedade de bens imóveis dos vários países. Enquanto pouco mais de 80% das famílias têm casa própria na Espanha (83%) e na Eslovénia (81,6%) – total que chega a 90% na Eslováquia –, isso é válido para apenas 44% das famílias alemãs.
A comparação a seguir mostra o papel significativo que a propriedade de bens imóveis desempenha nas estatísticas de riqueza: enquanto a mediana do patrimônio de uma família alemã que possui seu próprio apartamento ou casa totaliza 216 mil euros, esse valor cai para apenas 10,3 mil euros para quem vive de aluguel.
Também ficou claro que quem possui uma casa própria na Espanha e no Chipre não é tão rico quanto sugere o estudo do BCE. Os dados referentes à maioria dos países da União Europeia são de 2010, enquanto que algumas das informações relacionadas à Espanha são de 2008. Em ambos os países (Espanha e Chipre), o valor de muitas casas e apartamentos diminuiu drasticamente. Só a Espanha testemunhou um declínio de 36% no mesmo período.
Posted by Michel Medeiros
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