Socialista Morena 

(A Sesta, de Vincent Van Gogh)
Quando digo que sou socialista, enfrento duas arrogâncias, uma à direita e outra à esquerda. A primeira é óbvia: os direitistas acham que, depois da queda da União Soviética e do muro de Berlim, ser socialista se tornou anacrônico. Como se as ideias socialistas não existissem antes da revolução comunista de 1917 e não tivessem sido as responsáveis por muitas das conquistas trabalhistas do homem moderno, regimes falidos à parte.
Do lado esquerdo, a arrogância parte dos que se arvoram proprietários do socialismo, tão muquiranas do conhecimento quanto a direita mais tacanha. “O que você leu para se considerar socialista?”, perguntam. Como se só a uma elite intelectual fosse concedida a dádiva de sentir-se socialista. Não se dão conta de como espantam jovens que poderiam se sentir atraídos pelo socialismo agindo assim. Curioso: nunca vi fazerem o mesmo com defensores do capitalismo. Até porque capitalistas em geral não costumam ser muito amigos da leitura, né?
Essas discussões me fizeram lembrar de um velho texto meu sobre O Capital, de Karl Marx, em versão reduzida por seu genro Paul Lafargue. Seria mesmo necessário ler O Capital para se dizer marxista? As opiniões divergem. Esta reportagem é a última que fiz para a Folha de S.Paulo e foi publicada originalmente em 14 de fevereiro de 2004. Eu acho muito divertida.
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O Capital para preguiçosos
Só mesmo o autor de uma obra chamada O Direito à Preguiça parecia capaz de transformar O Capital, de Karl Marx (1818-1883), tido como o livro menos lido e mais comentado da história, em algo para se devorar “de uma sentada”. E foi o que aconteceu: empenhado em popularizar o catatau marxista de quase 600 páginas, sob o olhar vigilante de Friedrich Engels (1820-1895), Paul Lafargue (1842-1911) enxugou daqui, cortou dali, e chegou ao mágico número de 130 páginas de texto.
Prova de que Lafargue, ao contrário do que se imagina, era um genro e tanto. Francês de origem cubana, casado com uma das três filhas de Marx, Laura, ele se tornou célebre com seu Direito à Preguiça, de 1880, um dos símbolos da luta pela jornada de oito horas de trabalho. Há quem diga que defendeu o ócio à revelia do sogro comunista; outros, que o panfleto foi elaborado a partir de anotações do próprio filósofo alemão.
A compilação de O Capital por Lafargue, publicada originalmente em 1893 e que está sendo editada agora no Brasil, reúne os mais importantes tópicos do primeiro volume -são três ao todo. Leitor ávido de romances, Marx sabia ser espinhoso o capítulo inicial de sua obra, em que analisa a mercadoria, mas garantia, no prefácio à primeira edição, em 1867: “Não se poderá alegar contra esse livro dificuldade de compreensão”.
Nisso o barbudo que inspirou socialistas do mundo inteiro se equivocou: O Capital é considerado difícil até por marxistas. “Eu não li. Não entendo de economia e matemática o suficiente. Além disso, não acho que para ser marxista é preciso ler O Capital“, defende o deputado federal Roberto Freire, presidente do PPS (Partido Popular Socialista), que um dia já foi PCB (Partido Comunista do Brasil).
“Discordo inteiramente”, diz a cientista política Maria Victoria Benevides, que não leu e por isso prefere não se afirmar marxista. “Para ser marxista, no sentido de adepto de uma corrente de pensamento, é óbvio que tem que se ler O Capital. Não todinho, que eu nem com água-benta em cima consigo, só com intérprete de economia. Aquela linguagem matemática me é estranha, tenho muita dificuldade.”
“Tem que ler inteiro, sim. Um clássico diluído é como vinho com água, perde o sabor”, defende o filósofo Denis Rosenfield, que leu e gostou. “Alguém disse que a partir de determinado momento os marxistas já não conheciam Marx, porque não tinham lido O Capital. Viraram marxistas de ouvido. Um marxista que se baseia apenas no Manifesto Comunista não sabe do que está falando.”
É incrível como um livro com quase 140 anos ainda acende discussões acaloradas. “É chato”, afirma o historiador Evaldo Cabral de Mello. “É muito melhor pegar um intérprete atual que o debulhe, que troque em miúdos para o leitor do século 20. Um bom autor moderno, como Raymond Aron (1905-1983), de quem foi publicado recentemente O Marxismo de Marx, aplaina o caminho.”
“Para quem não quer entender a história contemporânea, deve ser uma chatice, mas para quem quer decifrar o capitalismo não é. A chave do mundo contemporâneo continua estando lá”, rebate o sociólogo Emir Sader, que conta ter lido os três volumes durante os seminários que aconteceram na USP no final dos anos 60. E ainda assim reconhece a dificuldade. “A gente lia 50 páginas a cada 15 dias. Aí dava.”
O filósofo José Arthur Giannotti, que leu o original em alemão (“é mais fácil”, afirma), não quis dar entrevista, mas fechou questão: “O Capital é capital”. E parece ser mesmo, até para leitores insuspeitos como o compositor Tom Zé, que o enfrentou na adolescência. ”A leitura de O Capital quando rapazinho provocou em mim um impacto tão profundo quanto o que tive, na maturidade, ao ler o Bhagavad Gita. Como se antes estivesse no ignoto, no desconhecido, e de repente encontrasse onde pisar”, diz. O cineasta Cláudio Assis, de Amarelo Manga, que estudou economia, não leu o livro todo, mas também gostou. “O Capital é muito bacana.”
Bacana ou chato, todo mundo concorda que os extratos de Paul Lafargue podem ser muito úteis, embora o leitor comum encontre prazer de fato é no apêndice “Recordações Pessoais sobre Karl Marx”, no final do livrinho. Lá ficamos sabendo que as filhas de Marx o chamavam de “Mouro”, por causa de sua tez morena, que prometera a elas escrever um drama sobre os tribunos romanos Caio e Tibério Graco, e que planejava fazer uma obra crítica sobre A Comédia Humana, de Balzac, logo que terminasse seus trabalhos econômicos. O Capital não permitiu que Marx se tornasse um literato.
O LIVRO:

O Capital de Karl Marx – Extratos Por Paul Lafargue. Tradução de Abguar Bastos. Conrad Editora, 160 págs.
Publicado em 27 de maio de 2013