Do Vice
Fogo em Paraisópolis
Entrevistas e imagens por Edward Davies e Michael Szmulewicz
Nesta quarta-feira, dia 5 de dezembro, a comunidade de Paraisópolis enfrentou
seu segundo incêndio em uma semana. Nossa equipe de vídeo debelou a
ressaca e se mandou pra lá. A última vez que fizemos isso foi em julho,
na Humaitá, e
tinham acontecido 24 incêndios em favelas na cidade de São Paulo. Esse
foi o 39º do ano, que destruiu oito barracos e não deixou nenhum
ferido. Este mapa pode te ajudar a visualizar espacialmente o que anda acontecendo nos últimos oito anos, e esta outra matéria talvez
te dê uma luz sobre por que isso acontece com tanta frequência.
Conversamos com algumas pessoas que estavam lá, e aqui estão dois
depoimentos.
VICE: Você estava aqui na hora que pegou fogo?
Wagner Lima Santos: Estava
no meu outro barraco, tô fazendo um. Vi pessoas gritando que tinha
fogo. Vim ajudar e, quando cheguei, era um barraco do meu primo. Não
tinha mais como a gente fazer nada, então pelo menos água a gente tentou
jogar várias vezes. Mas os caras da própria obra da prefeitura cortaram
a água, pra não chegar água aqui. Pra poder pegar fogo mesmo no
restante que tinha. De pouquinho em pouquinho, de balde em balde, a
gente tentou. Conseguimos apagar pelo menos metade. E os bombeiros
chegaram e deu tempo de jogar água e apagar os outros pra não acontecer
coisas piores. Até uma pessoa poderia morrido por aí, ó, num barraco
desses, crianças. A gente não tem segurança nenhuma aqui. E eles não
veem isso.
Peraí, você falou que o cara da prefeitura cortou a água?Os caras da obra, porque eles têm a chave.
Conta de novo essa história.Fiquei
sabendo que eles cortaram a água, porque a gente estava sem água hoje.
Eles cortaram a água lá pra não vir água pra cá. A sorte é que a gente
tinha de outra região que passava aqui, que a gente cortou. Ele cortou
com facão, pra poder pegar com balde d'água, porque ele não chegava nem
lá embaixo.
E por que você acha que eles fizeram isso?Porque
eles têm raiva que a gente mora aqui, ó, é humilde, é, tem pessoas que
fazem coisa errada, tem. Por que eles não vieram ajudar a gente?
Ninguém, nem pisaram o pé aqui. E muitos deles têm barraco aqui.
Muitos deles quem?Desses
caras da obra. Não precisa de casa, tem pessoas que precisam, mas esses
caras da obra não tão nem aí não. Eles fazem barraco por aí.
E teu primo perdeu tudo?Perdeu tudo.
Deu pra salvar alguma coisa?Nada. O único que
deu foi o da vizinha de lá, que deu pra salvar o tanquinho de lavar
dela. Fora que roubaram televisão aí nas casas, botijão. Pra você ver a
merda que a gente vive. A própria população não se ajuda. Como é que vai
pra frente? Não tem como.
Cê acha que foi um acidente ou teve algum motivo?Olha,
não posso acusar, não tenho certeza. Espero que tenha sido um acidente,
a gente não vai ganhar apartamento agora. Tá queimando o barraco pra
quê? A gente precisa dormir, acordar, comer, criar nossos filhos, a
nossa família e eles botam fogo. Mas são pessoas que são usuários, que
deixam uma vela acesa, uma bituca de cigarro, tem que ter consciência
que, numa casa dessas, você não pode usar, são de alvenaria. Cê tem que
tomar mó cuidado. Não pode deixar fios desencapados de jeito nenhum que
dá um curto, queima. Mata uma família inteira, se deixar.
O que você estava fazendo lá fora?Eu estava
anotando o nome do pessoal, pra essas pessoas ganharem cesta básica.
Essas pessoas que perderam tudo, praticamente, ganhar uma cesta básica é
o mínimo do mínimo que a nossa prefeitura de São Paulo tem que fazer.
Colchão. Se não querem dar casa, pelo menos dá o que comer pra gente.
Que a gente perde tudo por causa deles, a gente não tá aqui porque a
gente quer.
Vamos voltar um pouquinho então. A prefeitura dá cesta básica.É
lógico. Porque uma cesta básica, isso pelo menos eles têm que dar. Tem
comida que tá apodrecendo lá, arroz, saco de feijão. Acha que todo mundo
é bandido só porque a gente vive numa, vamos dizer... Numa comunidade
de Paraisópolis? A gente não é bandido, a gente é trabalhador. Eles
condenam a gente por ter tatuagem, porque a gente fuma, as pessoas fumam
maconha, usam o crack, não importa, eles são trabalhadores, eles
conseguem desse jeito viver. Cada um de nós aqui conseguiu um barraco
assim. Conquistado com suor, não roubando nada de ninguém não. A gente
tá aqui pra batalhar.
E seu primo agora vai pra onde?Ele
não tem pra onde ir. Agora tem, vamos dizer que tem, porque o meu
barraco eu tô fazendo ainda, mas se eu terminar ele vai ficar comigo lá.
Deixar na rua não posso deixar, se eu pudesse eu até levava todo mundo,
mas não tem como. Cada um ajuda um ao outro. Mas tem pessoas que não
estão nem aí.
E teu primo tá sabendo o que tá acontecendo?
Ele
já veio aqui. Ele trabalha na Globo. Ele é manobrista lá e não sabia o
que estava acontecendo. Aí eu liguei pra ele, e ele veio. Fiquei sabendo
pelos vizinhos que ele não saiu muito bem daqui e foi no canteiro da
obra. Mas não é lá que a gente vai resolver isso, é na Defesa Civil, pra
onde eles mandaram a gente, mas levaram pessoas que até não têm nada a
ver com a história.
Como assim?Tem pessoas
que não necessitavam de ajuda que foram dentro do carro e pessoas
precisando que estão aqui ainda. O ser humano não consegue viver com
outro ser humano, um se aproveita da situação do outro. Foram lá, ganhar
cesta básica sendo que não precisa. Só gosta de ficar olhando,
realmente. Ajudar a apagar o fogo, ninguém ajuda. Agora ficar ali
olhando, “olha, tô na televisão”. E daí? Cê tem que viver a realidade,
não é o que passa na televisão.
VICE: O que aconteceu no cano?
Antonia Janaina Gomes de Lima: Na
hora que começou o fogo, a moça avisou. Eu vim subindo naquele
desespero, peguei um balde de água e saí subindo. Fui quebrar o cano,
pedi a faca da moça. Na hora, não saiu água de jeito nenhum. Aí foi que
todo mundo entrou em desespero mesmo porque o fogo já tava aqui e ia
terminar de queimar isso aqui tudo. Na hora foi uma agonia, a gente não
sabia o que fazer. Todo mundo com balde d’água, quebrando os canos,
quebrando tudo. Porque, né, foi tufo de fumaça que você não via mais
nada.
Normalmente tem água nesses canos?Geralmente tem
água direto, mas nessa hora não tinha água nos canos, não tinha água em
nada. Na hora eu peguei a faca pra quebrar o cano mesmo. Aí os meninos
pegaram as outras facas e quebraram os canos pra poder jogar água por
cima. Porque deu desespero. Fiquei tremendo, sem saber o que fazer.
Porque você vê todo mundo gritando, perdendo suas coisas, os barracos se
acabando.
Onde você mora aqui?Eu tô de favor no
barraquinho de parente. Na situação que eu tô, a menina salvou só
algumas coisas minhas. Até minha bolsa, eu tava desesperada porque eu tô
com registro, tô com os meus documentos. A única coisa que eu ainda
tenho são os meus documentos. E aí, né? Roupa, calçado? Tô com pé no
chão. Tô na situação que tô. Ainda não almocei. [Chorando] Não é fácil
também. Você perder tudo que você tem. Todo mundo no desespero, como eu,
vi uma senhora que chegou aqui com duas crianças, chorando que tinha
perdido tudo também. Na hora você fica olhando sem saber o que fazer. A
nossa sorte foi que os meninos ali de cima desceram também, depois
vieram os bombeiros. E eu, sem saber o que fazer. É uma situação triste.
Só mesmo quem passa por isso sabe o que tá realmente passando. Porque
quem tá lá fora, quem tá assistindo a gente acha que “ah, isso aí é tudo
bandido”. A gente tá aqui porque a gente necessita mesmo, não tem pra
onde ir. A gente vai morar debaixo da ponte? Se morar debaixo da ponte
dizem que a gente é o quê? Mendigo, ladrão, prostituta, bandido, né? A
gente é família, tem filhos. Às vezes tem gente que sai de baixo da
ponte pra vir pra cá, faz um barraquinho. Os vizinhos ajudam. Se você
não tem, um vizinho vem, ajuda, dá um prato de comida, ajuda numa cesta.
Todo mundo trabalha também. Aí acontece isso.
Sinto muito. E agora que os bombeiros foram embora, o que vai acontecer com as pessoas que perderam a casa?Não
sei. Tô na casa de parente, não é meu. Pode ver na prefeitura que eu
não tenho cadastro, não tenho nada. A única coisa que eu tenho são meus
documentos e minhas roupinhas e acabou. Mais nada. Depois que tirar isso
aqui, só Deus sabe pra onde é que eu vou. Taí, tem gente que perdeu
tudo o que tinha. Tudo. Como uma senhora que tava com as duas filhas
dizendo que perdeu os documentos, registros. Acabou com tudo. Tem muita
gente que tá lá fora que acha que a gente tá... Que isso aí é só truque.
Mas não é truque não, gente, pelo amor de Deus. Tá aqui a realidade. Só
quem tá morando aqui vê a situação de cada um.
Qual você acha que foi a causa do incêndio?Não
tenho a mínima ideia, pra te falar a verdade. Porque foi uma coisa de
repente. Quando vi, foi aquele tufo de fumaça preta que você não via
mais nada. Aí foi onde entrou o desespero. Ainda hoje eu tô tremendo.
Meus pés estão cortados, de subir e descer isso aqui. Já levei uma queda
ali em cima da escada. Só Deus mesmo. Deus e as pessoas lá fora que
estão vendo, que possam fazer alguma coisa pela gente também. O governo,
alguém. Que a gente tá aqui é pedindo socorro, pelo amor de Deus. Olhem
pela gente também. No tempo da política, tá todo mundo aqui, pedindo
voto, fazendo e acontecendo. Na hora do desespero, cadê? Não aparece
ninguém. Aí você corre pra um lado, corre pra outro e acaba ficando em
casa de parente ou de amigos. Mesmo. Sendo humilhado e tudo.
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