segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A propósito do confisco fiscal 04/02/2013

por Guilherme da Fonseca Statter
Lembrei-me de uns parágrafos que escrevi em tempos e que vieram a ser incluídos no livro "Anatomia da Crise – Crónica de um Desastre Anunciado" . (Zéfiro, 2009). Falava aí – não lhe dando se calhar o relevo suficiente – da diferença entre "ordenado bruto" e "ordenado líquido". Com este aumento enorme (disse ele, o ministro...) dos impostos, as pessoas com emprego deverão ter-se apercebido dessa diferença crucial entre aquilo que as empresas contabilizam como "ordenado" (e outras coisas... comissões, bónus...) e aquilo que cada um leva mesmo "para casa" ao fim de cada mês. Talvez agora fiquem mais sensíveis ao argumento de que o importante mesmo é aquilo que efectivamente se recebe "em contado".

Passo a transcrever aqueles parágrafos, até porque me parecem particularmente relevantes para uma (entre outras, claro...hipóteses de "saídas para a crise". )

Aproveito para sublinhar aqui as coisas que me parecem mais importantes.

Vai por partes:
O TEMPO DE TRABALHO (1)

Começo naturalmente por aquela que me parece ser a medida mais problemática (por causa até do enorme combate ideológico que pressupõe...) mas que será também a solução ou medida mais estruturante e estrutural de todas as que se possam vir a desenvolver.

Ao falar mais atrás na relação entre os factores "capital" e "trabalho" estava também a pensar na relação entre "trabalho socialmente necessário" e "trabalho excedente".

Por outro lado e considerando que esta crise (como tantas outras antes desta) é uma crise de sobreprodução, então resultará daí uma primeira medida estrutural (no âmbito da economia) e estruturante (no âmbito da sociedade).

Desde logo, em primeiro lugar, penso na redução sistemática e progressiva dos horários de trabalho. Reclamação particularmente relevante se considerada no âmbito da totalidade dos países da União Europeia. Vem na linha da proposta aprovada em França pelo governo de Lionel Jospin, entretanto combatida pelos governos de direita que lhe sucederam. Vem também na linha da ênfase que hoje é dada, por diversos quadrantes políticos, à necessidade de "partilhar por todos o trabalho de facto disponível".

Parece-me, no mínimo, estranho que enquanto se vai aceitando como natural que em algumas fábricas ou sectores de actividade se fechem portas ou se suspendam actividades, durante determinados períodos (algumas semanas, por exemplo), de modo a ajustar a produção à procura efectiva, não se pense ao mesmo tempo em, pura e simplesmente, consagrar e generalizar essa prática, reduzindo os horários de trabalho para toda a gente.

Em termos de lógica funcional do sistema é exactamente a mesma coisa. Será tudo apenas uma questão de discutir e ajustar os detalhes. Se menos 3 horas por semana para toda a gente, neste ou naquele sector, se um dia inteiro por semana, se isto ou aquilo... Não há aqui soluções "chave na mão". Será sempre necessário analisar, caso a caso, e ninguém melhor para o fazer do que as empresas e os trabalhadores.

Ao Estado cabe apenas determinar o princípio, básico e fundamental, de uma redução geral do horário de trabalho, mas não apenas como "uma saída para a crise". A lógica do sistema há-de impor, mais década menos década, que cada vez seja menos necessário "trabalhar" tanto como até agora, no sentido em que hoje se entende esta palavra e que cada vez seja mais necessário "passar a intervir" na vida social.

Lembro a esse respeito a longa e dura luta que houve que travar, nos idos de 1844, para que no Reino Unido se generalizasse a redução dos horários de trabalho, de 12 para 10 horas por dia. Até fins do século XIX, princípios do século XX, conseguiu-se generalizar a prática das 48 horas por semana. Depois, em meados do século XX passou-se para o padrão de 40 horas por semana.

De então para cá, apesar dos enormes ganhos de produtividade social, a situação estagnou. Ou seja, em sessenta anos passou-se de 72 horas para 48 horas semanais. Mas, em cem anos, e apesar (repete-se), dos enormes ganhos de produtividade social agregada, não se conseguiu mais do que passar de 48 horas para 40 horas semanais.

Resumindo a evolução ao longo do século XIX, temos que até 1832 não havia limite e a questão de "horário de trabalho" nem sequer se punha. Em 1833 passou-se para o limite das 12 horas por dia ou 72 horas por semana. Em 1844 passou-se para o limite de 10 horas por dia ou 60 horas por semana, mas apenas em algumas actividades de maior desgaste físico. Em 1848 generalizou-se o limite das 10 horas por dia ou 60 horas por semana).
O TEMPO DE TRABALHO (2)

As empresas sempre, mas sempre, se opuseram a quaisquer reduções de horários de trabalho, invocando sempre as mais urgentes razões e acenando para as dramáticas consequências sociais e económicas no caso de o Estado impor reduções aos horários de trabalho.

Mesmo reconhecendo o aumento generalizado das férias anuais, a consulta de quaisquer estatísticas laborais mostrará à evidência que há ainda um longo caminho a percorrer para ajustar os tempos de trabalho às necessidades efectivas da vida social e económica.

Se entretanto considerarmos os tempos de acesso aos locais de trabalho, por parte das populações urbanas, vemos facilmente o impacto negativo que esta situação continua a ter (e a agravar-se) sobre a vida familiar e a vida social em geral. Neste contexto, a luta por uma redução progressiva dos horários de trabalho deve ser prosseguida até que seja alcançada a taxa "natural" de desemprego (cerca de 2 a 3%) e que corresponde aos desempregados ocasionais e em procura (de curta duração) de primeiro ou segundo emprego.

Esta redução progressiva dos horários de trabalho poderá mesmo ser efectuada com uma redução proporcional do salário nominal. Sublinha-se aqui o carácter de salário nominal!... Por um lado, ao trabalhador o que interessa é o salário líquido que efectivamente recebe, no seu bolso ou conta bancária, no fim da cada mês. Ou seja, bastará que o Estado faça os necessários e adequados ajustes nas tabelas e taxas de IRS, para que os trabalhadores ganhando nominalmente menos, continuem a ganhar efectivamente o mesmo, em termos absolutos, ainda que algo mais, em termos relativos.

Por outro lado, em sistema capitalista e em regime de "Estado Social", não é razoável esperar que sejam as empresas, uma a uma e a título individual, a suportar os encargos da solidariedade social. Esse encargo cabe por inteiro ao Estado de que todos somos cidadãos.

Em todo o caso é importante sublinhar que com a adopção de medidas deste tipo, todos podem sair a ganhar: os trabalhadores, as empresas e o Estado. Os trabalhadores porque passam a dispor de mais tempo para a família ou para seu aproveitamento pessoal. Desde o lazer à intervenção cívica. As empresas porque passam a dispor de mais variadas opções, em termos de qualificações, trabalhos por turnos e ainda de pessoas com mais variadas e diferentes motivações e qualificações. O Estado, porque tendo menos encargos com subsídios de desemprego, poderá mais facilmente suportar a não receita em sede de IRS, podendo mesmo, eventualmente – é apenas uma mera questão de "engenharia fiscal e de contabilidade social" – adoptar esquemas de incentivos fiscais dirigidos à actividade empresarial. Finalmente, o Estado ganhará sobretudo em termos de maior coesão social, a qual é sempre propícia ao investimento.

Mencionei mais atrás que com uma redução gradual, mas sistemática e sustentada, dos horários de trabalho, os trabalhadores passariam a ter mais tempo para a intervenção cívica. Tal facto parece-me crucial para a consciencialização da cidadania e para a discussão colectiva das decisões políticas mais importantes. Muito em particular no que diz respeito à participação activa nos diversos meios de discussão e decisão, desde as autarquias até à participação no processamento da Justiça.

Mas aqui – na ocupação dos "tempos livres" que pudessem ser dedicados a uma intervenção cívica – haverá a considerar o peso cada vez maior das indústrias da alienação as quais têm tido um papel explicitamente assumido de "entreter e distrair o pessoal". Como já diziam os dirigentes do Império Romano, "panem et circenses"...

Entretanto, em nota de rodapé tinha incluído algo como:
"Uma das razões porque as empresas combatem (recusam...) a redução dos horários de trabalho, até é simples e faz todo o sentido: é necessário (tem toda a vantagem...) aproveitar ao máximo o capital fixo (as máquinas e as estruturas físicas...) para delas tirar o máximo rendimento. Além do mais o trabalho por turnos – por causa de eventuais paragens ou abrandamentos – parece resultar menos eficiente do que o trabalho continuado dos mesmos trabalhadores".
Mas, a razão fundamental deverá parecer evidente: será muito simplesmente a luta contra a emancipação das classes trabalhadoras!...
O original encontra-se em http://umoutroparadigma.blogspot.pt/

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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