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A dívida privada é muito maior que a pública e
deve-se, em parte, à redução da capacidade aquisitiva da população, que é
consequência da queda dos rendimentos do trabalho à custa do aumento
dos rendimentos do capital. Por Vicenç Navarro.

Na análise sobre
para onde foi a riqueza que o mundo do trabalho está a criar,
verifica-se que foi predominantemente para os que obtêm os seus
rendimentos da propriedade do capital. Foto de César.
E o que é também alarmante, como sublinha Juan Torres, é o seu elevado crescimento. Segundo o BIP, a dívida privada na zona euro duplicou nos últimos nove anos, uma situação que se produziu também com a dívida privada de EUA, que duplicou em nove anos.
Outro dado de grande importância é que a dívida dos lares, que historicamente era bem mais baixa que a dívida empresarial, aumentou bem mais rapidamente que esta última. A explicação de todo este processo é fácil de encontrar, ainda que raramente será vista nos meios de maior difusão, altamente influenciados pelos grupos financeiros e empresariais que dominam a vida económica do país e que estão entrelaçados com tais meios (um exemplo disso: o dono do La Vanguardia, o conde de Godó, é o vice-presidente de CaixaBank, o maior grupo financeiro da Catalunha).
A causa do enorme crescimento da dívida privada é a enorme queda da massa salarial, que explica que os rendimentos do trabalho, do qual derivam os rendimentos da maior parte da cidadania, foram descendo como percentagem da renda salarial total, enquanto que os rendimentos do capital cresceram enormemente. É o que costumava definir-se como luta de classes, termo que hoje não se usa por se considerar “antiquado”. Só alguns grandes financeiros, como o Sr. Warren Buffet, um dos homens mais ricos dos EUA, podem dizê-lo sem reservas, afirmando que existe uma guerra de classes, e que é a sua que ganha diariamente. Os dados mostram que o Sr. Buffet tem toda a razão do mundo.
As causas da queda dos rendimentos do trabalho
Nos EUA, o salário horário (isto é, o salário que um trabalhador recebe por hora) diminuiu desde os anos oitenta, quando o presidente Reagan (o ídolo dos economistas neoliberais) iniciou a sua guerra contra os sindicatos, despedindo todos os controladores aéreos, mostrando assim ao mundo empresarial que estava aberta a temporada de caça aos sindicatos. Uma coisa semelhante ocorreu com a Sra. Thatcher quando iniciou a guerra contra os mineiros. Esta guerra foi vitoriosa, pois a percentagem da população sindicalizada nos EUA diminuiu notavelmente, sendo hoje apenas 11,3% de toda a população ativa (e isso apesar de a percentagem da população que gostaria de sindicalizar-se, se pudesse, foi aumentando) e disso devido às enormes dificuldades que o mundo empresarial põe a que os trabalhadores possam sindicalizar-se. O medo do despedimento (devido à grande desregulamentação existente no mercado laboral dos EUA) é uma das maiores causas desta diminuição da taxa de sindicalização.
Mas existem outras intervenções públicas que enfraquecem os sindicatos. Uma é a destruição de emprego, aumentando o número de desempregados e pessoas à procura de trabalho. O desemprego tem um enorme impacto a disciplinar o mundo do trabalho. Atemoriza toda a população que trabalha, com medo de perder o seu emprego. Este aumento do medo determina uma grande deterioração das condições de trabalho (o número de trabalhadores que dizem estar a trabalhar sob condições de stress tem aumentado nos EUA e em todos os países da UE), um aumento da precariedade e uma redução dos benefícios sociais.
Outra intervenção pública é a redução da proteção social, com diminuição, não só dos direitos laborais, mas também dos sociais. Os cortes de despesa pública social têm também como objetivo o enfraquecimento dessa proteção social, que enfraquece as classes populares, atemorizando-as ao perder segurança.
Estas são as armas do capital frente ao mundo do trabalho naquilo que o meu amigo Noam Chomsky chama de guerra de classes (“the class war”) na sua introdução ao livro “Há alternativas. Propostas para criar emprego e bem-estar social em Espanha”, de Juan Torres, Alberto Garzón e eu próprio. Nem é preciso dizer que as perdas do mundo do trabalho implicam ganhos do capital.
Quem ganha esta guerra?
A pergunta que me fazem os alunos é: como se beneficia o capital das perdas que a guerra de classes provoca ao mundo do trabalho? A resposta tem vários níveis.
Um é que na medida em que os rendimentos do trabalho baixam, os do capital sobem. E os dados falam por si mesmos (em Espanha, a percentagem dos rendimentos do trabalho em relação ao PIB passou de 2008 para 2012 – dados do quarto trimestre – de 49% para 46%, enquanto os rendimentos do capital aumentaram durante este período de 42% a 46%). Na realidade o crescimento dos últimos deve-se à redução dos primeiros. E a melhor prova disso é que, na análise sobre para onde foi a riqueza que o mundo do trabalho está a criar, verifica-se que foi predominantemente para os que obtêm os seus rendimentos da propriedade do capital.
Outro benefício que o capital, especificamente o financeiro, consegue da redução dos salários, é a necessidade que tem a população de endividar-se. O profundo endividamento das famílias deve-se precisamente à redução tão notável de sua capacidade aquisitiva. A enorme expansão do capital financeiro baseou-se precisamente neste endividamento familiar. O setor financeiro está hoje, na maioria de países, superdimensionado, o que tem criado um problema gravíssimo. O enorme poder da banca sobre os aparelhos estatais e mediáticos do país forçou comportamentos públicos, como a desregulamentação do capital financeiro, que causaram a enorme crise financeira que, indicador do seu poder, se tentou resolver com base no apoio público para garantir a sua existência. A escassa procura, causada pela redução da capacidade aquisitiva da população, fez com que a rentabilidade dos investimentos financeiros se tenha deslocado de setores produtivos para setores especulativos (facilitados pela desregulamentação do crescimento do capital financeiro), causa da enorme crise.
Verificamos assim que junto com a austeridade que experimentam os rendimentos do trabalho há uma exuberância dos rendimentos do capital, que está por trás da crise financeira que está a levar à pobreza e à miséria grandes setores da população. Esta é a situação raramente descrita nos meios de maior difusão e, desde logo, no La Vanguardia.
Artigo publicado por Vicenç Navarro na coluna “Domínio Público” no diário Público (Espanha), 28 de março de 2013.
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
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