Em O Outro Lado da Notícia
Rogério Lessa
O economista Marcio Henrique Monteiro de Castro, diretor do BNDES na
gestão de Carlos Lessa, ressaltou, em audiência pública no Senado, que o
atual projeto de inserção internacional do país, consolidado nos anos
90, é baseado num otimismo "que não mais se justifica".Durante o encontro, convocado pelo senador Roberto Requião (PMDB-PR), líder da representação brasileira no Parlamento do Mercosul, para discutir desenvolvimento e crise, Castro defendeu um "plano B" para o Brasil e também para o Mercosul:
"O peso do fluxo comercial do Mercosul no comércio exterior brasileiro chegou ao máximo em 1998 (19%). Daquele ano até hoje, houve queda de aproximadamente 10%. O Brasil acreditou no "fim da História", num mundo solidário no qual o mercado ajustaria as relações econômicas entre os países e levaria ao desenvolvimento em escala mundial. Eram os dias favoráveis a uma "integração competitiva", a cereja do bolo do pensamento neoliberal para os países periféricos, hoje carinhosamente tratados de emergentes", historiou o economista.
Nesta entrevista, que publicaremos em duas partes, ele critica o fato de o país ter "globalizado e dolarizado suas riquezas financeiras". Para Castro, no mundo atual, o protecionismo deve ser considerado "não por uma atitude retrógrada de nos retirarmos do mundo, mas porque nele queremos permanecer".
Nos anos 90, o país abriu sua economia, desregulamentou o sistema financeiro, permitiu a plena mobilidade de capitais, privatizou estatais. Quais os frutos que estão sendo colhidos a partir dessa opção?
Transformamos nossas riquezas financeiras em riquezas globalizadas, dolarizadas. Aumentamos a desnacionalização de nossa economia, tendo como consequência a esperada elevação de remessas de divisas.
Criamos uma dívida pública que paga um expressivo volume de juros - em termos absolutos equivalente ao que paga a dívida pública norte-americana. Essa situação cria uma simbiose entre uma crise de balanço de pagamentos e uma crise fiscal.
Mas não ficamos apenas nisso. Nossa visão otimista dizia que um mundo de guerras e desavenças estaria ficando para trás. Os novos problemas seriam globais e enfrentados pela comunidade das nações. A ideologia do "fim da História" justificava que, em se vivendo nesse mundo de paz e democracia, caberia aos países lutar pelo aperfeiçoamento dos fóruns internacionais e aprofundar os mecanismos democráticos e de desenvolvimento social em escala internacional.
Abrimos mão da gestão de aspectos estratégicos. Visando a reduzir o Estado ao tamanho preconizado pelo neoliberalismo, abandonamos as atividades de planejamento, a formulação e a execução de políticas industriais, de autonomia tecnológica, de fortalecer as Forças Armadas e de ter efetiva inserção geopolítica. Questões relativas às políticas de energia e comércio exterior, entre outras, foram relegadas aos mercados, embora permanecesse a idéia de que deveria haver alguma regulamentação.
O Mercosul (1991) foi uma criatura daquela época. Qual a sua avaliação do desempenho do bloco?
Para o Brasil, o Mercosul seria um importante passo para modificar o elevado protecionismo que então vigorava. Era um vestíbulo que nos levaria a uma maior liberalização comercial. Uma integração liderada pelos mercados. Segundo palavras de Samuel Pinheiro Guimarães (2000): "O Mercosul vinha sendo apresentado, até a crise cambial de janeiro de 1999, como o principal e talvez único projeto de integração bem-sucedido entre países em desenvolvimento." Mas a crise de 1999 lançou dúvidas sobre a oportunidade do Mercosul e os argumentos em sua defesa sofreram uma inflexão.
Em que sentido?
Recupera-se a idéia de que a integração não era só comercial, mas, sim, deveria fazer parte de uma estratégia vigorosa de desenvolvimento, lembrando em parte a integração preconizada pela velha Cepal, de (Raul) Prebisch e (Celso) Furtado. Nessa visão, a questão central seria o tamanho do mercado capaz de suportar uma industrialização que se apoiava em grandes escalas industriais e tecnologias intensivas em capital. Uma integração que pressupunha industrialização, planejamento e relações assimétricas de reciprocidade. Mas, apesar da recuperação dessas idéias ao longo do debate, a verdade é que a integração econômica ficou determinada pelos mecanismos de mercado.
Mesmo com a mudança de orientação na política econômica argentina a partir de 2001?
Essa mudança não encontrou espaço transformador por parte do Brasil, que, naquele momento, orquestrava uma política macroeconômica com viés conservador e que, por ser a economia determinante no bloco, definiu os rumos e manteve as assimetrias existentes.
Na primeira década do século, o Brasil dobra sua aposta em uma inserção subordinada aos capitais globalizados, implementando o que tem sido chamado pelos economistas Luiz Figueiras e Reinaldo Gonçalves (respectivamente da UFBA e URFJ) de "modelo liberal periférico".
Qual a consequência para o Mercosul?
O bloco prosseguiu acumulando assimetrias que são reproduções de uma antiga divisão internacional do trabalho. Tal como antes, as distorções históricas entre centro e periferia no comércio internacional continuavam a existir entre os participantes e entre estes e o mundo do capitalismo central. A existência do Mercosul não alterou as tendências comerciais entre os países participantes nem seus diferentes pesos relativos.
O peso do fluxo comercial do Mercosul no comércio exterior brasileiro chegou ao máximo em 1998 (19%). Daquele ano até hoje, houve queda de aproximadamente 10%. Quando desagregamos os números por países, ganha relevância o bilateralismo com a Argentina (85%), revelando que o desenvolvimento do bloco regional encontra sérios obstáculos com sua atual configuração - são poucos países e muito diferentes.
Em relação ao movimento de capitais a diferença também é grande?
Esse aspecto aponta para uma tênue integração entre as economias do bloco. A Argentina recebeu US$ 40 bilhões entre 2006 e 2011. Do Brasil, recebeu US$ 5,4 bilhões; dos Estados Unidos, cerca de US$ 7 bilhões; e da União Européia (UE), US$ 17,9 bilhões.
O Brasil, por seu lado, recebeu cerca de US$ 220 bilhões no mesmo período, sendo US$ 22,9 bilhões dos EUA, US$ 68 bilhões da UE e US$ 10 bilhões do Japão. Ou seja, a Argentina não aparece no radar. Um dado adicional. Das quatro grandes aquisições de empresas estrangeiras por empresas brasileiras, em 2011, apenas uma envolveu empresa do Mercosul: a do Banco da Patagônia pelo Banco do Brasil. O Brasil volta-se para a UE e os EUA. Na América Latina, antes da crise de 2008, os paraísos fiscais (Bahamas, Bermudas etc.) eram destino relevante.
O que esses números significam em termos de política econômica e em relação ao Mercosul?
Que o mercado não levará a integração a qualquer resultado notável. Caso seja estratégica a construção desse bloco para a afirmação do Brasil e dos países sul-americanos no cenário internacional, é necessário que se defina outro caminho. A integração tem de mudar de mote. Só acontecerá se for apoiada num projeto político no qual o Brasil assuma de forma clara sua liderança e aceite pagar o preço dessa posição.
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Na segunda parte da entrevista que concedeu ao Monitor Mercantil, a partir de discurso feito no Senado, o economista Marcio Henrique Monteiro de Castro, integrante da diretoria de Carlos Lessa no BNDES, pondera que o neoliberalismo também foi nefasto para o Estado norte-americano. Castro propõe que o Brasil use o planejamento estatal para melhorar seu papel na divisão internacional do trabalho.
A atual crise levará ao declínio do poder norte-americano?
É preciso separar analiticamente a crise do poder imperial e a crise do capitalismo. As guerras mundiais e a crise de 1929-30 jogaram um papel fundamental na reordenação do poder mundial, na primeira metade do século XX. Neste cenário, há três momentos distintos, sendo o primeiro a crise de 1929/30 e a implementação do New Deal com a criação de instituições regulatórias internas (FBI, energia elétrica, preços , Glass-Steagal etc.) e o segundo, no pós-guerra, quando foram estabelecidas as instituições regulatórias externas (Bretton Woods, ONU, Otan, Plano Marshall). Nesse momento temos a combinação da bipolaridade estratégica e de, no campo ocidental, um multilateralismo subordinado. Num terceiro momento, em 1971, tivemos a crise do dólar (Bretton Woods) que, por um breve intervalo de tempo, abriu espaço para políticas nacionais não coordenadas e pela busca de um multilateralismo independente.
A crise atual é uma volta ao passado?
A história do poder mundial no pós-guerra é a história da Guerra Fria e da vitória norte-americana nesse contencioso. Toda a coordenação multilateral e cumprimento (adesão) de regras (Bretton Woods) foi facilmente implementada numa primeira fase da Guerra Fria e na montagem do sistema de alianças norte-americano (Otan, Plano Marshall). É verdade que alguns aliados, quase sempre os franceses, saíam dos trilhos. Mas enfrentar o comunismo era a prioridade absoluta. Com a reconstrução econômico-industrial dos aliados (velhos e novos) os EUA começaram a ter dificuldade de impor seus interesses. Os aliados ficaram reticentes em bancar a hegemonia benevolente dos EUA - em bancar os custos de uma combinação de welfare com warfare. É nesse contexto que as instituições do pós-guerra -Bretton Woods - começam a deixar de funcionar.
Isto abriu espaço para o neoliberalismo?
O neoliberalismo foi uma política e uma ideologia funcional à retomada dos EUA nos anos 1980. Impôs uma unilateralidade para o enfrentamento com a URSS e combinou-se com uma política externa afastada dos interesses dos aliados, como bem exemplifica a aproximação com a China. A política monetária norte-americana - o reaganomics - possibilitou o financiamento da corrida militar e o desmantelamento da URSS. Deu origem também a um sistema monetário no qual os EUA emitem a moeda mundial - o dólar, uma moeda nacional inconversível!
Mas esse movimento teve consequências externas e internas aos EUA. A vitória norte-americana na disputa estratégica dos anos 1980 sacramentou a hegemonia norte-americana (moeda mais armas mais energia) e liberou alguns impulsos do capitalismo ao implementar o neoliberalismo com desregulamentação, desestatização e financeirização a partir do dólar.
Para funcionar melhor o capitalismo poderia regular mais de perto "mercadorias especiais", como trabalho, terra e dinheiro?
Todos - revolucionários ou conservadores - achavam que o capitalismo para funcionar necessita de freios, anteparos. E que sua tendência à concentração levaria a crises crescentes. A globalização, que foi a expansão do capital pelo mundo, numa fase de integração produtiva e, acima de tudo, financeira, quebrou estruturas produtivas mundo afora, criou integrações subordinadas, com especializações, muitas vezes regressivas ao primário-exportador, e, acima de tudo, com os "3 Ds" (dólar, desregulação e desestatização), enfraqueceu os Estados mundo afora.
Mas essa destruição do Estado também ocorreu nos EUA. Pois a destruição do New Deal com as políticas neoliberais de Nixon, Reagan, Bush Pai, Clinton e Bush Filho permitiu que o capitalismo norte-americano - domado a partir de Roosevelt nos anos 30 - desenvolvesse todas as suas perversões inerentes. Tomemos como exemplo a gestão do orçamento do Pentágono - é sabido que é desperdiçador, ineficiente e associado à corrupção - o que isso nos diz? Vemos uma regressão imperial. A república desaparece. A coisa pública e o bem comum dão lugar ao privado e ao lucro. Ali fornecedores, o Pentágono e os comitês do Congresso dirigem uma parcela significativa do orçamento da União, o maior fluxo de dinheiro do mundo. Ali se realiza uma operação de apropriação privada do Estado em uma escala nunca antes vista. Ali se pode identificar uma transfiguração do complexo industrial militar com um papel crescente para as companhias privadas de serviços militares, com a privatização parcial de uma das instituições básicas do Estado. Temos, portanto, a privatização de dois pilares do estado: a moeda e as forças armadas.
Então a globalização não foi boa nem para os EUA?
A globalização virtuosa, pensada em um momento de "fim da história", deu lugar a um mundo onde a competição entre as nações não se detém diante da ameaça a paz mundial ou ao desastre ecológico. É esse mundo que está a exigir do Brasil um Plano B. Um breve olhar para a conjuntura internacional nos revela a profundidade e a velocidade das mudanças em curso. E, por isso, nossa urgência. O desenvolvimento chinês redesenhou os fluxos econômicos criando oportunidades e ameaças que não podem mais serem desconhecidas. No que nos toca, a reprimarização de nossas exportações e a competição com as nossas exportações industriais estão empurrando o Brasil para a antiga divisão internacional do trabalho (DIT), que não é capaz de sustentar o desenvolvimento. Não é confortável a posição de exportarmos alimentos para um grande, o maior, produtor mundial de alimentos. Menos confortável ainda é quando sabemos que planeja montar um sistema de produção de alimentos offshore. (Rio Negro, Argentina)
Como vê a União Européia, centro das atenções nos dias atuais?
A UE é a mais ousada experiência de integração econômica e política e está em xeque. Os limites do euro estão sendo testados. Os prognósticos não são otimistas. O euro é uma experiência singular. Uma moeda que não tem por trás de si um Estado, um núcleo forte de soberania que é capaz de produzir e modificar normas quando a necessidade assim exige. É moeda que se sustenta pelas regras macroeconômicas de variáveis fiscais de cada membro individualmente, mas não existe um orçamento europeu.
A importância comercial da UE não pode ser minimizada. É um dos principais destinos de nossas exportações. Para o Brasil, em 2011, ocupava o primeiro lugar tanto nas exportações como no fluxo total de comércio. Para a Argentina só fica atrás do total da América Latina e Caribe. Com relação aos fluxos de IED, no século XXI, a UE lidera com folga tanto no caso brasileiro 47%, como no argentino 44%. A crise da UE nos afetará profundamente, nem tanto pela balança comercial, mas pelo movimento de capitais, com uma perspectiva de repatriação de investimentos ou, pelo menos um arrefecimento no fluxo de IDE da UE no Brasil e nos países do Mercosul.
Como sair da posição de exportador de primários e praça pagadora de juros para o capital financeiro?
Podemos retomar nosso caminho para a industrialização. O Brasil tem escala para definir uma estratégia de desenvolvimento. Nossa fonte de expansão está na construção da infra-estrutura econômica, urbana e social. Não precisamos fazer um keynesianismo qualquer, podemos fazer um plano de investimento que sustente nossa industrialização. Planejar as finanças nacionais e comércio exterior, como aconselhava o grande economista brasileiro Ignácio Rangel, são os passos seguintes para esse caminho.
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