sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Proposta italiana de caçar sonegadores 30/11/2012

Do Valor
Mundo mudou, e ricos pagarão mais imposto
Humberto Saccomandi
É possível ter um barco de lazer e declarar renda anual de R$ 50 mil? Sim. Pode-se ter ganho o barco ou tê-lo comprado com patrimônio acumulado. Mas é muito improvável manter esse barco ao longo do tempo com essa renda, sem redução de patrimônio. Há licenças, seguro e manutenção a pagar. Logo, o proprietário possivelmente tem mais renda, não declarada, que permite cobrir essas despesas.
Esse é o raciocínio do Fisco italiano, que implementará, a partir do ano que vem, um sofisticado mecanismo de estimativa de renda, para tentar coibir a sonegação. Estima-se que os italianos soneguem cerca de € 160 bilhões por ano, mais que o bastante para resolver o problema do déficit público.
O novo mecanismo chama-se redditometro (rendômetro). No jargão técnico da Agenzie delle Entrate (a Receita Federal local), é uma "verificação sintética de tipo indutivo". Com ele, o Fisco estima a renda anual do contribuinte. Se a estimativa ficar 20% ou mais acima da declarada, inicia-se um processo de fiscalização.
Alta desigualdade de renda parece cada vez mais intolerável
Como é feita essa estimativa? Em parte com base na declaração de renda e patrimônio dos contribuintes. Dependendo do tipo de bem, o Fisco estima o gasto anual com manutenção. Dependendo da casa e do local onde a pessoa mora, o Fisco estima o seu gasto médio, com base em dados da pesquisa de domicílio do Istat (o IBGE italiano). Além disso, o Fisco consulta outras bases de dados acessíveis ao Estado. Ele pode saber quantos celulares há no domicílio (e estimar o gasto com celulares), pode saber quantos carros há em nome da pessoa (se o contribuinte não declarar tudo o que tem), com base no registro de veículos, e por aí vai.
Segundo Attilio Befera, diretor da Agenzia, uma família italiana a cada cinco tem gastos "não coerentes com a renda" e cerca de um milhão de famílias (4% do total) declaram renda "perto de zero", mas fazem despesas "relevantes e recorrentes".
Outra novidade é que o contribuinte pode fazer um teste para avaliar a sua situação em relação à renda declarada. Com o "redditest", um software baixado da internet, ele saberá em quanto o Fisco deverá estimar a sua renda. O teste usa o padrão de estimativa do redditometro.
Esse mecanismo refinado de coleta fiscal aponta algumas tendências. Primeiro, é óbvio, a necessidade de alguns Estados europeus de ampliar a sua arrecadação. Mas sugere ainda que a tolerância com a sonegação é cada vez menor e que cresce a pressão social por mais equidade fiscal, isto é, para que os ricos paguem mais impostos. Esses dois últimos fenômenos parecem não estar restritos a um punhado de países europeus em crise.
Não só os contribuintes estão na mira no combate à sonegação. Bancos (muitos receberam ajuda do Estado durante a crise) e paraísos fiscais estão sob pressão intensa. A decisão das Ilhas Jersey de devolver dinheiro atribuído a Paulo Maluf não era comum até pouco tempo atrás. A OCDE (entidade que reúne países ricos) está negociando com a Suíça um mecanismo de verificação de dinheiro não declarado, o que na prática acabaria com o sigilo inviolável dos bancos suíços.
Uma opção dos governos para elevar a arrecadação seria taxar mais as empresas, além dos ricos. Alguns países com baixa carga fiscal (como na América Latina) ainda devem fazer isso. Mas, na maior parte do mundo rico (e no Brasil), elevar impostos tiraria competitividade das empresas, que já enfrentam concorrência externa forte de países com baixa tributação, em especial da Ásia. Assim, isso significaria se arriscar a perder empregos. O governo brasileiro está desonerando as empresas para ajudá-las a ganhar competitividade. Recém-eleito presidente dos EUA, Barack Obama prometeu fazer o mesmo.
Ricos, claro, podem migrar para países de baixa tributação. Alguns já o fizeram. O brasileiro Eduardo Saverin, cofundador do Facebook, abdicou da cidadania americana e se mudou para Cingapura, economizando US$ 39 milhões em impostos por ano, segundo estimativas. Políticos americanos o acusaram de estar fugindo da taxação e ameaçaram represálias. Hoje, quem solicita visto de entrada para os EUA tem de responder se já renunciou à cidadania americana para fugir do fisco. Mas quantos ricos ocidentais querem morar em Xangai ou Cingapura?
Essa tendência evidente de taxação maior dos ricos (seja combatendo a sonegação, seja elevando impostos) terá impacto político? Já está tendo.
Obama se elegeu prometendo cobrar mais de quem ganha mais, após décadas de aumento da desigualdade de renda nos EUA. O presidente francês, François Hollande, prometeu elevar a alíquota máxima do IR para 75%, o que chega a ser punitivo em relação à riqueza. As maiores alíquotas de IR na Europa ficam pouco acima de 50%. No Brasil, é de 27,5%. Do ponto de vista de arrecadação, a proposta de Hollande não terá efeito significativo. Mas, do ponto de vista político, é uma resposta à demanda crescente para que os ricos contribuam mais neste momento de crise e por um retorno a um modelo europeu de maior igualdade.
O italiano Norberto Bobbio, no seu livro "Direita e Esquerda", insistiu que as diferenças entre os dois lados permaneciam, mesmo após o colapso do comunismo, e definiu direita e esquerda como os partidos, respectivamente, da liberdade e da igualdade, as principais linhas políticas do Ocidente, advindas da Revolução Francesa. Nos 30 anos antes da crise de 2008, o discurso da liberdade individual, do Thatcherismo até a Reaganomics, foi hegemônico. Isso levou, entre outras coisas, a processos de desregulamentação, como o dos mercados financeiros. As esquerdas tiveram dificuldade de responder e se adaptar. Algumas partidos optaram, com sucesso eleitoral, por absorver parte do discurso de liberdade da direita, como fez o Novo Trabalhismo britânico de Tony Blair.
A crise está fazendo a roda girar. O crescimento da desigualdade em quase todo o mundo durante essa hegemonia de liberalismo parece cada vez mais intolerável. O discurso de maior igualdade, que foi hegemônico no mundo rico entre os anos 1930 e 1970, voltou a ganhar força. Isso pode favorecer as esquerdas. Favoreceu a reeleição de Obama. A esquerda está à frente nas pesquisas na Alemanha e na Itália, que terão eleições em 2013. Mas partidos de direita irão captar essa mudança de sensibilidade nas sociedades e incluir, de algum modo, o reequilíbrio de renda nas suas agendas. Nos EUA, os republicanos não fizeram isso, insistindo no discurso contrário.. E perderam uma das eleição mais ganhas da história americana.
Humberto Saccomandi é editor de Internacional. Escreve mensalmente às quintas-feiras

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