7/12/2012, Ahmad Shokr,
Middle East Research and Information
Project, MERIP
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
“A rua não
organiza: a rua é organizada”
8:03 PM –
8/12/2012
[Pelo Twitter,
traduzido]
Ahmad Shokr |
Quem passe os
olhos pela cobertura da mídia nos EUA e as análises sobre a crise do Egito nas
duas últimas semanas, acabará desapontado. Os protestos contra o presidente
Mohamed Mursi (eleito) estão em escalada, mas os principais atores e os
projetos em disputa aparecem sempre mal caracterizados. Alguém perguntará: e por
que isso importa?
As discussões
sobre o atual momento do Egito são importantes nos EUA, precisamente porque a
Fraternidade Muçulmana está em plena campanha para construir legitimidade
internacional. O fato de que tenham equipe de especialistas em política
exterior, altamente qualificados, trabalhando para eles em Washington, quando
ainda sequer conseguiram criar condições razoáveis para discutir com a oposição
externa, é eloquente.
Analistas e
comentaristas norte-americanos liberais, desejosos de se afastarem do legado de
islamofobia que restou do pós-11/9, e querendo dar aos islamistas recém-eleitos
uma chance justa, parecem ter posto de lado as adesões que os motivem no plano
interno nos EUA, para modelar alguma compreensão do que está acontecendo no
Egito. Nesse processo, estão reforçando inúmeras preconcepções erradas.
Primeira preconcepção errada: “Há no Egito, sobretudo, uma divisão entre
islamismo e secularismo”
Essa é, com
certeza, a linha que a Fraternidade Muçulmana tentou projetar por seus
porta-vozes e representantes. Mas, olhada a questão pelo outro lado, tudo é bem
diferente. Nenhum dos líderes da oposição rejeitou a ideia, sempre presente, de
que os princípios da Xaria, a lei islâmica, devem ser fonte de direito, como
estipula o artigo 2º da Constituição. Nem qualquer deles exige total separação
entre religião e política. Nas ruas, tanto quanto sei, não se vê nenhum slogan ou canto que clame por
secularismo. A fúria da oposição tem alvo mais bem definido: a Fraternidade
Muçulmana, que, para a oposição, está tentando dominar a política egípcia. Esses
medos fundamentam-se nas ações da FM, ao longo dos últimos dois anos.
A desconfiança
entre a FM e os que lhe fazem oposição vem crescendo há muito tempo. Tem menos a
ver com convicções religiosas e, mais, com escolhas políticas. Desde a deposição
de Mubarak, a FM sempre manifestou desprezo pelos demais grupos de oposição e
pouco interesse em construir algum consenso e um mapa do caminho de alguma
transição política , com os fundamentos de uma nova ordem política. Em vez
disso, apressaram as eleições, sabendo que, naquelas circunstâncias melhoravam
suas chances eleitorais; e emergiram como poder eleito, não como parceiros de
uma revolução democrática. Quando os manifestantes voltaram à Praça Tahrir, em
novembro de 2011, para exigir transferência menos abrupta e mais genuína de
poder aos civis, os Irmãos afastaram-se e disseram que os protestos estariam
sendo instigados por sabotadores, trabalhando para prejudicar o bom andamento
das eleições parlamentares.
Ahmed Shafiq |
Depois de trair a promessa que tinham feito de não
apresentar candidato à presidência e de vencerem as eleições em junho (em parte
porque atraíram os votos de não islâmicos que temiam uma restauração do velho
regime de Ahmad Shafiq), os Irmãos não constituíram Assembleia Constituinte mais
inclusiva (a Assembleia continuou dominada pelos islamistas). Depois de uma
série de boicotes e deserções, muitos grupos – cristãos, mulheres, liberais, a
esquerda – acabaram praticamente sem representantes.
Nesse contexto,
surgiu o decreto de Mursi do dia 22/11, o qual, para muitos, foi a gota d’água
que fez transbordar o copo. Ao assegurar-se poderes para ele mesmo e correr a
convocar um referendo, já para 15/12, para confirmar a nova Constituição, Mursi
deixou os egípcios sem outras opções: ou ser governados por uma Constituição
pouco representativa, ou por um ditador. Muitos recusaram esse tipo de chantagem
política.
Figuras destacadas da oposição,
muitos dos quais dissidentes da época de Mubarak, exigiram que Mursi revogasse o
decreto [o decreto foi revogado hoje, 8-9/12. [Ver, sobre isso de 9/12/2012, Al-Jazeera em: “Egypt’ s Morsi rescinds controversial decree” (com vídeo) (NTs)],
e ampliasse o
processo de redação da nova Constituição. Grupos egípcios de direitos humanos,
praticamente com unanimidade, fizeram eco a essas demandas. Dezenas de milhares
que participaram dos protestos que derrubaram Mubarak voltaram às ruas. Não
lutam por qualquer espécie de secularismo mal definido; querem, isso sim,
inclusão e democracia.
Segunda premissa
errada: “Os islamistas são autênticos
representantes da maioria dos egípcios”
O corolário,
claro, é que a oposição representaria uma minoria secular contrária ao governo
dos islamistas e que não estaria disposta a aceitar o resultado de eleições
legítimas. Um analista do International
Crisis Group disse ao New York
Times que os protestos persistem,
porque a oposição não consegue “aceitar essas derrotas; e tenta deslegitimar a
Fraternidade Muçulmana”. Embora essa interpretação talvez se aplique às elites
da era Mubarak, que perdem espaço sob o novo regime, absolutamente não explica
os milhares de manifestantes que se opõe, de fato, às manobras antidemocráticas
de Mursi.
Mohamed Mursi |
Não há qualquer
tipo de constatação empírica que demarque maioria definitória, no Egito. Os dois
campos, a Fraternidade Muçulmana (e seus aliados islamistas, inclusive os
salafistas) e a oposição são capazes de reunir centenas de milhares de
manifestantes nas ruas – o que se viu claramente nas duas últimas semanas, prova
de que a polarização aprofunda-se na sociedade egípcia. Mursi venceu as eleições
por diferença muito pequena, maioria de 51% dos votos, o que sugere que o campo
islamista não seja tão claramente representativo das grandes massas eleitorais
no Egito, como diz ser.
Aí parece estar o
impasse crucial da crise política no Egito. Com a Fraternidade Muçulmana
convencida de que conta com o apoio da maioria dos egípcios, e de que a oposição
não passaria de uma pequena elite já sem poder, os Irmãos agiram como se
tivessem mandato democrático de direito e de fato para abrir atalhos pelo
processo político. Até que seus líderes parem de pensar em termos de maiorias e
minorias, e reconheçam que há grupos eleitorais diferentes no Egito, que vários
deles são gigantescos e têm aspirações legítimas a partilhar os frutos da
revolução, o impasse, mais provavelmente, persistirá. E as coisas podem piorar:
os Irmãos podem tentar recorrer à repressão policial contra a oposição.
O
incitamento entre Irmãos da FM, para entrarem em confronto aberto com
manifestantes da oposição na 4ª-feira (5/12/2012); e as ameaças de Mursi de que
usaria força policial legal contra figuras políticas que, para ele, estão
financiando o caos e a violência, podem empurrar o Egito para caminho perigoso.
Terceiro erro de análise: “Mursi
deu grandes passos na direção da democracia civil; se cair, pode facilitar a
volta de uma ditadura dos militares”.
Acusações de que,
ao bloquear o processo político, a oposição visa a um golpe interpreta
erradamente o papel dos militares na atual crise. O exército também está
interessado na atual versão da Constituição, que preserva intactas suas
prerrogativas centrais: orçamento secreto, controle militar sobre o Ministério
da Defesa, voz ativa nas decisões de segurança nacional e o direito de julgar
civis em tribunais militares. Os generais livram-se de ter de encontrar parceiro
civil que administre o dia a dia do governo, ao mesmo tempo em que mantêm a
autonomia para cuidar de seus próprios interesses, bem longe dos olhos de
qualquer controle democrático.
Essas concessões fazem perfeito sentido com o
padrão dos Irmãos, de não hostilizar os generais no caso de qualquer ameaça ao
caminho da FM até o poder.
A versão hoje
existente de Constituição, a ser votada, não manifesta um consenso democrático,
como muitos da oposição diziam que teria de manifestar. Reflete um
relacionamento nascente entre a Fraternidade Muçulmana e as instituições já
existentes no Estado egípcio, como o Exército, além de cuidar de acalmar os
salafistas, que os Irmãos adotaram como novos parceiros.
A pressa para obter o
referendo sugere profunda ansiedade entre as elites do Estado com a
instabilidade crescente, e um desejo de aproveitar a oportunidade para cimentar,
o mais rapidamente possível, um novo quadro político. Mais preocupante do que o
próprio texto, é a visão que esses líderes têm sobre que vozes contam mais e que
alianças são mais importantes no novo Egito. Se ninguém constestar essa visão,
os principais perdedores serão os que mais clamam por um sistema mais pluralista
e inclusivo.
Jason Brownlee |
Em mensagem do dia 6/12, Jason
Brownlee escreve: “É importante que o debate ideológico entre o secularismo
liberal e o islamismo não seja visto como batalha entre democracia e
autoritarismo”. Talvez os recentes eventos no Egito exijam que se repensem esses
termos. Claro que secularismo liberal e democracia não são automaticamente
co-ocorrentes; como o islamismo e o autoritarismo tampouco o são. A batalha no
Egito é, de fato, batalha por uma democracia que reflita a diversidade política
do país, contra o que mais parece ser um autoritarismo remodelado, liderado pela
Fraternidade Muçulmana e seus aliados, que tentam assumir o
controle.
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