17/4/2013, Norman Solomon, Commondreams
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Norman Solomon |
Depois
das bombas que mataram e mutilaram tão horrivelmente na Maratona de Boston,
políticos e jornalistas da imprensa-empresa dos EUA [sempre caninamente
repetidos por políticos e jornalistas da imprensa-empresa no Brasi] não se
cansam de repetir discursos de compaixão – e incansáveis “duplipensar e
duplifalar”, que George Orwell definiu como:
...empenho
em apagar e fazer esquecer todos os fatos inconvenientes.
Em
sincronia com veículos comerciais em todo o país, o New York Times
estampou manchete de apavorar, na 1ª página da edição da 4ª-feira:
Bombas
de Boston Carregadas para Estraçalhar, dizem autoridades.
A
matéria falava de uma panela de pressão cheia de pregos e pedaços de metal;
...montada
para disparar fragmentos pontudos de metal, contra todos que estivessem no campo
de explosão.
Explosão da bomba caseira próxima da chegada da maratona de Boston |
Muito
menos improvisadas e pesando quase 500 kg, as bombas CBU-87/B de
fragmentação estavam classificadas sob a categoria de “munição de efeitos
combinados”, quando foram disparadas, há 14 anos, por um bombardeiro que levava
o nome de “Tio Sam”.
A
imprensa-empresa nos EUA praticamente nem noticiou o “evento”.
Bomba de fragmentação (ing. cluster bomb) aberta e as "bolinhas" (ing. bomblets) |
Numa
6ª-feira, ao meio-dia, forças da OTAN lideradas pelos EUA lançaram bombas de
fragmentação sobre a cidade de Nis, na área vizinha de um mercado de legumes e
frutas.
As
bombas explodiram perto de um complexo hospitalar e de um mercado, causando
mortes e cobrindo de estilhaços as ruas da terceira maior cidade da
Serbia
– leu-se em
despacho do San Francisco Chronicle, dia
8/5/1999.
E:
Numa
das ruas que leva ao mercado, viam-se corpos estilhaçados, entre cenouras e
vegetais, em poças de sangue. Um dos cadáveres coberto por um lençol, de uma
mulher, ainda tinha na mão a cesta de compras cheia de cenouras.
Destacando
que bombas de fragmentação “explodem no ar e espalham pregos e fragmentos de
metal sobre vasta área”, o correspondente da BBC, John Simpson, escreveu no
Sunday Telegraph:
Usadas
contra alvos humanos, as bombas de fragmentação estão entre as armas mais
selvagens do moderno arsenal bélico.
Nos
EUA, “armamento selvagem” não significa armamento proibido. De fato,
para o
então comandante-em-chefe, Bill Clinton e seus cérebros militares
belicistas, assessores em Washington, “selvagem” é um dos atributos
positivos das bombas de
fragmentação. Cada uma delas dispara cerca de 60 mil fragmentos afiados
de metal
contra o que o fabricante das bombas descreve como “alvos moles”.
Funcionamento das Bombas de Fragmentação e suas "bomblets" (ing.) |
Um
raro repórter diligente, Paul
Watson do Los Angeles Times noticiou,
de
Pristina, Yugoslavia:
Em
cinco semanas de ataques aéreos, dizem testemunhas locais, os aviões da OTAN têm
disparado bombas de fragmentação, que lançam bombas menores, de explosão
retardada, sobre vastas áreas. No jargão militar, essa munição menor é chamada
bomblets
[ap.
“bombinhas”]. O Dr. Rade Grbic, cirurgião e diretor do principal hospital de
Pristina, vê, diariamente, provas de que a expressão “bombinha” apenas mascara o
trágico impacto desse tipo de munição. Grbic, que salvou a vida de dois meninos
albaneses feridos quando outras crianças brincavam com uma bomba de fragmentação
não detonada encontrada no sábado, disse que nunca, em toda a vida, fez tantas
amputações.
A
matéria do LA Times citava o Dr. Grbic:
Sou
ortopedista há 15 anos, trabalhando em região de conflito onde sempre se veem
ferimentos terríveis, mas nunca antes vimos, nem eu nem meus colegas, o que
vimos depois que as bombas de fragmentação começaram a ser usadas. São
ferimentos extensos e profundos. Os membros estão de tal modo destroçados, que a
única via possível é a amputação. É terrível, terrível.
O
relato prossegue:
Só
o hospital de Pristina já recebeu entre 300 e 400 feridos por bombas de
fragmentação desde que começou a guerra aérea da OTAN, dia 24 de março. Metade
das vítimas são civis. Esse número não inclui os mortos pelas bombas de
fragmentação, nem os feridos em outras regiões da Iugoslávia. O número total de
vítimas é muito superior. A maioria das vítimas são atingidas pelas bombas
menores, programadas para explodir algum tempo depois de lançadas, quase sempre
já no solo.
Adiante,
já durante a invasão e nos primeiros tempos da ocupação, militares dos EUA
lançaram bombas de fragmentação no Afeganistão. E também usaram munição de
fragmentação no Iraque.
Hoje,
o Departamento de Estado ainda se opõe à proibição desse tipo de arma, como se lê na página
oficial:
As bombas de fragmentação são
comprovadamente úteis do ponto de vista do interesse militar. A eliminação delas
do arsenal dos EUA poria em risco a vida de nossos soldados e dos soldados
de nossos parceiros
de coalizão.
E
o Departamento de Estado prossegue:
Além
disso, as bombas de fragmentação frequentemente resultam em muito menos dano
colateral que bombas unitárias, como o que seria causado por bombas
maiores ou fogo mais amplo de artilharia, se usados para a mesma missão.
Vai-se
ver... Os que encheram uma panela de pressão com pregos e pedaços pontiagudos de
metal e a explodiram em Boston raciocinaram exatamente como, e tão
pervertidamente quanto, o Departamento de Estado!
Mas
que ninguém espere esse tipo de leitura dos jornais comerciais diários ou das
redes comerciais de televisão – nem, sequer, de redes “públicas” do tipo da National Public Radio (NPR) em programas
como “Morning Edition” e “All Things Considered”, ou do Public Broadcasting System (PBS) e seu
“NewsHour”.
Quando
o assunto é matança e mutilação de seres humanos, esses veículos imediatamente
assumem o pressuposto “alto padrão moral” preventivo da Casa Branca.
Em
seu romance 1984, Orwell escreveu sobre o reflexo condicionado de:
...paralisar,
encurtar, como que por instinto, parar sempre um passo antes de qualquer
pensamento ousado, considerado perigoso (...), para não ser perturbado,
entediado ou repelido por qualquer ideia ou linha de pensamento que leve a
alguma heresia.
Esse
duplipensar e duplifalar – incansavelmente reforçado pelo jornalismo comercial
de massa – preserva-se ainda dentro de uma zona proibida à crítica, na qual
nenhuma ironia radical é admitida, e que admite, no máximo alguma autossátira,
pressuposta menos danosa à coerência intelectual e moral.
Todo
o noticiário distribuído por veículos das empresas de jornalismo comercial sobre
as crianças mortas e feridas em Boston, cada relato da horrenda mutilação de
braços e pernas, faz-me lembrar de Guljumma, uma menina que tinha sete anos
quando a encontrei em um campo de refugiados afegãos, num dia do verão de 2009.
Guljumma |
Naquela
época, escrevi
que:
Guljumma contou o que aconteceu
uma manhã, ano passado, quando ela dormia em casa, no vale Helmand, no sul do
Afeganistão. As bombas explodiram às 5h da manhã. Morreram parentes seus. Ela perdeu um
braço.
Os
EUA não ofereciam qualquer tipo de ajuda humanitária às várias centenas de
família que viviam, em condições miseráveis, no campo de refugiados nos
arredores de Cabul. O único contato significativo que jamais houve entre
Guljumma, o pai dela e o governo dos EUA foi quando a casa deles foi
bombardeada.
A
guerra favorece todo tipo de abstrações jornalísticas, mas Guljumma não é
abstrata. É tão concreta quanto as crianças cujas vidas foram arruinadas para
sempre, pelas bombas na Maratona de Boston.
Problema
é que os mesmos veículos de jornalismo comercial que não se cansam de falar da
preciosidade das crianças feridas em Boston mantêm-se absolutamente indiferentes
às crianças como Guljumma.
11 crianças assassinadas pelo terrorismo dos EUA-OTAN no Afeganistão em 7/4/2013 |
Pensei também nela quando vi o
noticiário e uma foto horrenda, dia 7/4/2013, de um dia em que 11 crianças, no leste
do Afeganistão, tiveram ainda menos sorte que Guljumma. Aquelas crianças
morreram num ataque aéreo da
OTAN-EUA.
Para
os jornalistas empregados do jornalismo comercial norte-americano, ali nem havia
notícia; para os militares norte-americanos, não foi grande coisa.
Os
cachorrinhos de circo dançam quando o domador estala o chicote –
escreveu Orwell – mas os cachorrinhos
realmente bem treinados são os que dão seus saltinhos, quando nem se ouve o
chicote.
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