Por Paulo L. Marques *
Em um contexto atual de profunda crise econômica,
similar ao do Brasil na década de 90, a Espanha vê o ressurgimento de
experimentações de Economia Social e Solidária por parte dos movimentos
sociais em uma perspectiva não só de enfrentamento da crise do
desemprego mas como possibilidade de uma proposta pós-capitalista. É o
que nos mostra o livro recém lançado em Barcelona, “Adiós, capitalismo”, do pesquisador e ativista catalão Jordi Garcia Jané.
Garcia Jané é autor de diversos livros sobre Economia Social e Solidária, entre eles “Crise Capitalista e Economia Solidária”,
assim como diversos artigos em revistas. É integrante da Rede de
Economia Solidária da Catalunha e Coordenador da Revista NEXE,
especializada no tema da Autogestão e Economia Cooperativa. Neste novo
livro o tema que o autor discute é a possibilidade e perspectiva da
Economia Solidária como projeto pós-capitalista. Uma discussão que tem
sido também central nos debates do movimento da Economia Solidária no
Brasil.
O livro de Jordi tem o mérito de encarar esse debate,
buscando na experiência concreta da Espanha, uma reflexão mais
profunda sobre o significado da chamada Economia Social e Solidária que
vive a contradição de, ao mesmo tempo que propõe uma forma de
organização da Economia a partir de novas relações de trabalho, produção
e distribuição, estar inserida e dependente do sistema capitalista de
produção, com suas características próprias, antagônicas ao que propõe a
economia solidária.
O problema levantado no livro consiste, portanto, na
indagação que todos os envolvidos com o tema fazem, ou seja, se a
Economia Solidária têm condições de constituir-se em alternativa ao
sistema capitalista de produção. Para o autor a resposta é positiva,
para ele “este setor constitui uma fonte de inspiração para pensar como poderiam funcionar algumas das instituições fundamentais de una economia pós-capitalista”.
A Economia Social não é novidade para a Espanha- não
podemos esquecer que foi na Catalunha que se deu uma das mais profundas
experiências de autogestão econômica da história no período de
1936-1937( MINTZ,2006) e que volta para a agenda dos ativistas
anti-capitalistas, ganhando espaço não apenas nos meios acadêmicos mas
também em experiências práticas e nos discursos dos atuais movimentos
sociais como os “indignados”; movimento de massas que eclodiu em 2011 em
protestos contra a crise de desemprego e falta de perspectivas,
principalmente para a juventude.
No campo teórico, Garcia Jané tem identificação com
as ideias do professor Paul Singer, conhecido como um dos mais
importantes teóricos da Economia Social e Solidária no Brasil e atual
Secretário Nacional de Economia Solidária do governo Federal. Para ambos
a Economia Solidária tem um potencial de constituir-se como alternativa
nos interstícios do sistema. Constituindo um novo modo de produção que
pode conviver com o modo capitalista na perspectiva de superá-lo, ao
responder aos desafios de uma economia de igualdade e inclusão,
diferentemente da lógica capitalista.
Conforme Jané afirma no livro , “de nada não nasce nunca nada. Se podemos seguir experimentando a possibilidade de criar uma sociedade mais justa, livre e sustentável que o capitalismo é porque, em seu seio, já agora, se estão gestando muitas pequenas formas de trabalhar, consumir, relacionar, habitar, aprender, querer… que prefiguram esse hipotético dia de amanhã”.
Esse conceito não está isento de críticas, alguns
autores veem na Economia Solidária nada mais do que uma estratégia do
capital para resolver o problema de amplos setores sociais que ainda
estão fora do sistema. Para outros (NOVAES,2011, BENINI, 2012) existe um
potencial de experimentação, uma práxis de auto-organização e
auto-governo que tem um rico caráter pedagógico que não pode ser
menosprezado, mas sim potencializado, sendo necessário também um
aprofundamento do compromisso com a transformação do sistema, ou seja,
em um a perspectiva para além do capital.
Essa questão, portanto, do significado e do potencial
da Economia Solidária para a transformação ou não do sistema econômico é
um tema que acompanha os debates políticos e acadêmicos sobre essa
forma de trabalho e de produção há bastante tempo. No caso do Brasil,
esse tema não está esgotado. Cabe destacar que na esquerda brasileira em
geral, o tema da autogestão sempre teve pouca ou nenhuma importância, o
que impediu ao longo da história dos movimentos sociais anti sistêmicos
que fosse realizado uma discussão mais profunda sobre o significado das
experiências de autogestão econômica realizada por trabalhadores no
país.
Mesmo com o avanço organizativo do movimento da
Economia Solidária no Brasil a partir da criação do Fórum Brasileiro de
Economia Solidária no âmbito do Fórum Social Mundial e a criação de uma
Secretaria Nacional no governo federal, o tema nunca ultrapassou os
limites de uma política de assistência e enfrentamento à pobreza. Esse
talvez seja um dos grandes limites da Economia Solidária hoje, a
incapacidade de colocar em um programa de transformações políticas o
tema do controle da economia pelos próprios trabalhadores associados. Um
debate que os Espanhóis começam a realizar no atual momento histórico.
O caso da Espanha hoje tem sido similar ao vivido
pelo Brasil na década de 90, ou seja, na esteira da profunda crise
econômica surgem diversas alternativas econômicas auto-organizadas pelos
trabalhadores formando um “campo de experimentações não-capitalistas”,
formado por empreendimentos solidários, cooperativas populares etc, como
mostra o livro de Jané.
Assim como na Espanha atualmente, no Brasil o
processo de emergência da Economia Social se deu no contexto dos
movimentos sociais, seja o MST, os sindicatos, movimentos quilombolas,
movimento de mulheres etc… Porém, se por um lado levou à constituição de
novos movimentos, fóruns articulações políticas com criação de
entidades, associações, políticas governamentais etc, por outro lado,
vem sofrendo o impacto das mudanças ocorridas na última década com as
ascensão de governos progressistas em diversos países da América Latina,
que redirecionaram a política econômica buscando respostas à crise, a
partir do fortalecimento do Estado e de políticas desenvolvimentistas.
Com estas transformações e a inclusão de milhares de
trabalhadores no mercado formal de trabalho a Economia Solidária no
Brasil vive sua “hora da verdade”, pois tem a frente o desafio de
superar o papel funcional de “braço social” do capitalismo, que responde
pelos setores que o sistema não consegue absorver. Não temos dados para
afirmar se este novo cenário fez a Economia Solidária recuar, mas no
mínimo se manteve como estava a dez anos , não houve avanços. Um dos
elementos para este processo tem sido a clara fragilidade das
experiências de Economia Solidária existentes assim como as política
públicas.
A incapacidade de politizar o tema da autogestão
talvez seja um dos elementos da fragilidade que o movimento da ES vive
hoje, ou seja, não conseguiu incluir a autogestão ou a economia dos
trabalhadores nos debates sobre desenvolvimento, o que significa colocar
na agenda dos partidos de esquerda, dos movimentos sociais, em especial
o sindical essa proposta. Essa realidade dificulta a superação deste
papel assistencial que caracteriza a economia solidária. Eis um dos
motivos da necessidade de aprofundar o diálogo com proposições que
apontam para um debate sobre pós capitalismo e não apenas resistência a
suas mazelas.
No bojo da crise sistêmica que vive a Espanha,
diversos grupos, intelectuais, pesquisadores, estão buscando saídas,
alternativas, e novamente as propostas de “Outra Economia”, “Economia
Social” ressurgem como possibilidade. Talvez a diferença do que ocorreu
aqui e o que ocorre na Espanha seja a enfase que se está dando na busca
de um projeto não apenas para responder à crise do emprego, mas como
proposta pós-capitalista.O que consiste em um grande avanço, inclusive
para um diálogo mais profundo em âmbito internacional, possibilitando
talvez superar os impasses e fracassos que se transformaram os atuais
“fóruns sociais” .
Outro elemento para análise diz respeito à visão dos
governos “progressistas” da América Latina sobre a Economia Solidária,
baseadas na lógica da “composição” com a “grande economia”, leia-se as
corporações internacionais e grandes empresas capitalistas nacionais. A
lógica de uma “convivência pacifica” e “harmoniosa” em uma “economia
plural”, onde cabem as economias solidária e “não solidária” tem sido a
posição predominante. O que é um limite claro para o necessário debate
sobre as possibilidades da prática autogestionária como projeto
estratégico pós capitalista.
No prólogo do livro de Garcia Jané , Federico Mayor Zaragoza aponta alguns elementos para enfrentar os desafios atuais: “O grande desafio que hoje afronta a humanidade em conjunto é inventar o futuro. É urgente utilizar plenamente a faculdade criadora distintiva da espécie humana. Agora esta grande inflexão histórica, de mudança radical de rumo, é possível. Estamos vivendo uma crise sistêmica que requer transformações profundas para iniciar uma nova era, tão esperada depois de séculos de poder absoluto masculino e, no melhor dos casos , de democracias frágeis e vulneráveis ”
Garcia Jané aponta no livro o que ele entendo como
premissa para pensar as práticas da economia solidária em perspectiva
pós-capitalista : “Romper com o imaginário dos velhos modelos e mitos que nos aprisionam . Romper com o pensamento fatalista de que não existe nada para fazer, que não existe nenhuma alternativa”.
Como bem afirmou Daniel Jover em sua resenha sobre o livro de Jané, “Por fim, a perspectiva de “Adiós, capitalismo”
consiste em articular a resistência criativa com a visão transformadora
e a experimentação antecipatória”. Um desafio que está posto para todos
e todas que compartem a visão de que um projeto de sociedade
pós-capitalista é hoje urgente e necessário.
Todavía, esse é um processo que requer, sobretudo,
uma nova estratégia por parte do movimentos sociais anti-sistêmicos e em
particular da Economia Solidária no Brasil e em escala global, que
passa fundamentalmente pela radicalização da critica ao sistema
capitalista e a proposição de uma economia controlada e gerida pelos
trabalhadores como projeto claramente pós capitalista.
Referências:
BENINI, E. Sistema Orgânico do Trabalho. Arquitetura crítica e possibilidades. São Paulo, Icone, 2012.
JANÉ. Jordi Garcia. Adios, Capitalismo. 15M -2030.Barcelona, Icária, 2012.
MINTZ, F. Autogestión y anarcosindicalismo en la España Revolucionária,Madrid, Traficante de sueños, , 2006.
MINTZ, F. Autogestión y anarcosindicalismo en la España Revolucionária,Madrid, Traficante de sueños, , 2006.
NOVAES, H. O Retorno do Caracol à sua concha. Alienação e desalienação em associações de trabalhadores, São Paulo, Expressão Popular, 2011.
*Paulo L. Marques é doutor em sociologia pela Universidad de Granada/Espanha e professor Universitário.
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