Luis Carlos Azenha
As revistas literárias, quem diria, estão se transformando no espaço
para as grandes reportagens que antes saiam nos jornais. Como o público
delas é razoavelmente sofisticado, não engole qualquer lixo vendido a
título de “jornalismo”. A mais recente edição da London Review of Books traz uma reportagem excepcional de James Meek, How we happened to sell off our electricity, “Como aconteceu da gente vender nossa eletricidade”, que é um raio xis do sistema elétrico do Reino Unido.
Resumo: o neoliberalismo de Margaret Thatcher entregou a soberania
energética do Reino Unido logo… à França. O equivalente ao Brasil
entregar à Argentina o poder de decidir sobre as questões mais
importantes do futuro de sua matriz energética — ou vice-versa.
O texto mostra como os britânicos se desfizeram da estatal Central
Electricity Generating Board (CEGB) apenas para vê-la substituída
primeiro por investidores norte-americanos e em seguida pela estatal
francesa EDF. Mostra como, na França, a multinacional EDF enfrenta uma
campanha de ativistas que trabalham para evitar cortes de energia para
quem não pode pagar a conta, agindo como se fossem Robin Hoods do século
21.
Trechos (observações entre colchetes do Viomundo, para facilitar o entendimento):
“O que aconteceu não é o que eles [os que promoveram a privatização]
prometeram ou pretendiam quando colocaram a indústria estatal de
eletricidade do Reino Unido à venda. Antes do fim deste ano, políticos,
regulamentadores e corporações tomarão decisões que vão determinar a
vida elétrica do país pelo próximo meio século.
Vão decidir como manter as luzes acesas e as rodas da indústria em
movimento pelos próximos cinquenta anos sem afetar severamente o clima e
sem nos empobrecer. Mas como resultado das ações tomadas uma geração
atrás pelos conservadores de Margaret Thatcher — um partido cujo
programa nacionalista prometia independência da Europa — agora as
decisões não dependem apenas do Reino Unido.
Thatcher prometia menos envolvimento do Estado mas o futuro da oferta
britânica de energia agora depende de companhias estatais francesas
baseadas em Paris: Electricité de France, mais conhecida como EDF, e
Areva, fabricante de usinas nucleares. A EDF e a Areva vão construir
novos reatores nucleares no Reino Unido? Se sim, quanto isso vai custar
ao público britânico e francês?”.
*****
“Em 1981, com inflação e desemprego acima dos 10%, o recentemente
eleito governo conservador forçado a ceder diante de demandas dos
mineiros, cortes de gastos públicos provocando protestos e a carreira de
Thatcher como primeira ministra parecendo fadada a um fim ignominioso,
um economista de 38 anos da Universidade de Birmingham chamado Stephen
Littlechild trabalhava em formas de colocar em prática uma ideia
esotérica que tinha sido muito discutido em círculos radicais dos Tory
[o Partido Conservador inglês]: privatização. A privatização não era
patente da Thatcher.
O economista espanhol Germà Bel liga a origem do termo à palavra
alemã Reprivatisierung, primeiro usada em inglês em 1936 pelo
correspondente em Berlim da revista Economist, que escrevia sobre a política econômica dos nazistas. Em 1943, em uma análise do programa econômico de Hitler no Quarterly Journal of Economics,
a palavra “privatização” entrou na literatura acadêmica pela primeira
vez. O autor, Sidney Merlin, escreveu que o Partido Nazista ‘facilitava a
acumulação de fortunas privadas e de impérios industriais por seus mais
importantes membros e colaboradores através de privatização e
outras medidas, com isso intensificando a centralização das questões
econômicas e de governo em um grupo cada vez mais diminuto, que poderia
ser classificado de elite nacional socialista’.
Os caubóis livre-mercadistas que chegaram ao poder com Thatcher em
1979 talvez não soubessem do prelúdio nazista, mas com certeza sabiam
das privatizações mais recentes, no Chile de Pinochet”.
*****
“A solução de Littlechild para o Reino Unido foi substituir o teto
existente nos Estados Unidos para o lucro [das empresas elétricas
privadas] por um teto para o preço da energia vendida ao consumidor. As
companhias privatizadas só poderiam aumentar seus preços anualmente
pelo equivalente à inflação menos um fator X, que a agência reguladora
definiria a cada cinco anos.
Os preços deveriam cair em termos reais todos os anos: parecia um bom
negócio para o consumidor. Mas o que não parecia óbvio para a maioria
das pessoas eram as imensas oportunidades para as empresas privadas de
energia cortarem custos e não apenas demitindo trabalhadores”.
*****
“Mas, assim que os privatistas calcularam a capacidade de produção
disponível e os custos de manter as diferentes usinas, criaram um
sistema para definir o preço de atacado da energia tão complicado que só
era entendido pelas pessoas que dirigiam as empresas, justamente
aquelas cujo interesse era manter o preço o mais alto possível.
No anos 90, os custos do petróleo, do gás e do carvão cairam e o
gerenciamento agressivo tornou as usinas mais baratas de tocar,
especialmente com as demissões de trabalhadores. Ainda assim o preço da
energia no atacado ficou o mesmo. Os grandes players privados
encontraram formas de manipular o mercado para manter os preços altos.
Eles eram capazes de desvirtuar o sistema declarando, por exemplo, que
uma certa usina estava temporariamente indisponível para gerar
eletricidade. O preço da energia, então, aumentava — e num passe de
mágica a usina voltava ao sistema”.
*****
“É uma cruel conclusão da realidade de privatizar serviços
essenciais: o que está sendo vendido não é a infraestrutura, mas
cidadãos pagantes de contas; o que está sendo privatizado não é a
eletricidade, mas a cobrança de impostos.
De fato, o governo francês [dono da EDF] está comprando o direito de
taxar clientes britânicos através de suas contas de eletricidade; o
direito de usar dinheiro e espaços britânicos para financiar uma
demonstração mundial de uma tecnologia francesa ainda não testada [a que
seria aplicada em futuras usinas nucleares, já que o sistema elétrico
britânico precisa de mudanças urgentes]. E como os impostos escondidos
na conta de eletricidade não levam em conta a capacidade de quem paga,
quanto mais pobre você for, maior é sua contribuição ao programa”.
*****
“Ainda assim, as luzes não se apagaram. Pelo menos é o que um
deputado disse a Dieter Helm [economista britânico especializado em
serviços essenciais] alguns anos atrás, quando ele prestava depoimento
no Parlamento. As pessoas haviam alertado que haveria blecautes no
inverno anterior, mas não houve, disse o deputado. Com paixão incomum,
Helm colocou as coisas em seu devido lugar. Se você define o problema
como luzes que não se apagaram, afirmou, não entendeu nada sobre como
funciona o novo mundo dos mercados de eletricidade. A situação ideal
para as empresas privadas de eletricidade é que exista apenas energia
suficiente para o consumo.
Podem cobrar quanto quiserem que as pessoas vão pagar. ‘As pessoas
pensam que insegurança no fornecimento significa que as luzes vão ou não
se apagar — mas esta nem é a questão’, ele disse. ‘A questão é o que
acontece logo antes das luzes se apagarem’. Mais de vinte anos depois do
lançamento do grande experimento com eletricidade, dá para ver que
embora tenha sido um ato de privatização — na verdade, de taxação — foi
mais significativamente um ato de alienação, criando uma barreira
impenetrável de complexidade, segredos comerciais e distância geográfica
entre as companhias e os clientes que elas servem.
É fácil trocar fornecedores [possível no Reino Unido]. Mas os
consumidores-camponeses do Reino Unido agora trazem seus dízimos até os
portões trancados dos grandes latifúndios elétricos e se perguntam:
afinal, quem mora lá? Estão em casa ou em alguma outra propriedade, em
outra parte do mundo? Não é de surpreender que Denis Cohen [líder
sindical francês], um velho comunista, herdeiro dos Communards e dos
sans-culottes, odeia o que a companhia que o paga [EDF] está fazendo
fora da França. ‘Fiquei surpreso ao saber que sindicalistas britânicos
não se opuseram a isso’, ele disse, referindo-se à privatização e ao
controle estrangeiro do setor elétrico. ‘Nós, com nossa cultura,
teríamos lutado até a morte para evitá-lo’”.
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